O absurdo da existência em Camus: Reflexões sobre sua peça O equívoco
Maurício Uzêda de Faria
Doutorando em Filosofia - UFBA
A revolta e o absurdo são noções centrais na filosofia de Camus. Além de estarem presentes, como núcleos principais, em O homem revoltado e O mito de Sísifo, respectivamente, os referidos temas perpassam também suas obras literárias, como O estrangeiro, A peste, O equívoco, etc. A relação entre as duas noções é exposta nas primeiras páginas de O homem revoltado, em que Camus relaciona o problema do suicídio e do absurdo, como aparece em O mito de Sísifo, ao do homicídio e da revolta, em O homem revoltado (CAMUS, 1999, p.15). Embora neste último ensaio Camus trate principalmente do assassinato como ação política, em outros momentos podemos ver como este problema – do “direito” de matar, ou do crime travestido de inocência – aparece fora da esfera política.
A peça O equívoco foi escrita por Camus em 1943 e encenada pela primeira vez em 1944. Nessa tragédia moderna, Camus pretende apresentar o absurdo da situação humana descrevendo as ações de personagens que, revoltados contra suas condições materiais e aspirando uma vida que se encontra além de suas possibilidades, embarcam em uma aventura criminosa com a certeza que têm o direito de aniquilar o outro com o objetivo de enriquecer.
Propomo-nos neste texto a fazer uma reflexão sobre a peça O equívoco com o objetivo de ressaltar alguns temas e imagens recorrentes em sua obra, como a revolta, o simbolismo do sol, a questão da autenticidade e o silêncio de Deus, sem deixar de dialogar com outros textos do autor, principalmente O estrangeiro e O homem revoltado.
A luz do sol, que ilumina a terra e nos dá a vida, pode também nos trazer a morte...
A ideia da peça já se encontra esboçada no romance anterior O estrangeiro (1942), quando Meursault, já na prisão, lê uma notícia de jornal sobre um fato que teria ocorrido na Tchecoslováquia:
Um homem partira de uma aldeia para fazer fortuna. Ao fim de vinte e cinco anos, regressara casado e com um filho. A mãe dele, juntamente com a irmã, tinha uma estalagem na aldeia. Para lhes fazer uma surpresa, deixara a mulher e o filho noutra estalagem e fora visitar a mãe, que não o reconheceu. Por brincadeira, tivera a ideia de se instalar num quarto como hóspede. Mostrara o dinheiro que trazia. De noite, a mãe e a irmã tinham-no assassinado a martelada e atirado o corpo ao rio. No dia seguinte de manhã, a mulher do desgraçado viera à estalagem e revelara, sem saber, a identidade do viajante. A mãe enforcara-se. A irmã atirara-se num poço (CAMUS, 1979, p. 247).
Com algumas variações, é essa história que vai compor o enredo de O equívoco. Nela João é envenenado, a mãe atira-se no ribeiro junto ao cadáver do filho e é Marta, a irmã, que se enforca. Em O estrangeiro, após ler a notícia no jornal, Meursault reflete: “Devo ter lido esta história milhares de vezes. Por um lado, era inverossímil. Por outro lado, era natural. De todos os modos, achava que o viajante merecera até certo ponto a sua sorte e que nunca se deve brincar com estas coisas” (CAMUS, 1979, p.247-248). Pensamento que suscita algumas reflexões. Será que, para Meursault, a inconveniência da brincadeira é suficiente para que o brincalhão mereça uma sorte tão cruel?
Talvez pudéssemos nos perguntar o que significa para o personagem a ideia de alguém que esconde sua identidade, fazendo-se passar por outro, afinal, é o fato de não ter chorado no enterro da mãe, importante argumento da acusação, que preocupa o advogado encarregado de sua defesa: o crime em si, o assassinato do árabe, é em alguma medida obscurecido pela preocupação com a dificuldade de Meursault de manifestar os gestos esperados em situações como essas, ainda que falsos e encenados (CAMUS, 1979, p.229, 273). Por outro lado, o João de O equívoco morre justamente por tentar se passar por outra pessoa: os problemas da autenticidade e da clareza na comunicação se encontram presentes, portanto, nas duas obras e em ambas desencadeiam a morte de seus personagens.
A luz do sol é também um elemento em comum entre O equívoco e O estrangeiro. Neste último, Meursault mata o árabe na praia por causa do sol; em O equívoco Marta e a mãe matam João em uma terra fria e cinzenta, pela ausência de sol. Presas a uma existência sombria, mãe e filha sonham com uma casa de praia, em um país “onde o Sol mata todas as perguntas” (CAMUS, s/d, p.184), e assassinam os hóspedes para roubá-los e acumular a soma necessária para sua empreitada. Assim, a clareza nos gestos e nas palavras e a luz do sol podem trazer a morte, pela sua ausência e pela sua presença.
Após a perda da inocência... tudo é hábito
A frieza e a indiferença com que João é recebido na estalagem é apenas o preâmbulo de um crime que já se transformou em hábito, trabalho rotineiro. Quando retorna no dia seguinte e fica sabendo o que foi feito de seu marido, Maria, esposa de João, perplexa, pergunta a Marta: “Então, tanto a mãe como a irmã dele eram...criminosas?...”, ao que a outra responde: “Sim, era esse o seu ofício” (CAMUS, s/d, p. 279-280). Essa representação do crime como um trabalho, um ofício, atravessa toda a peça e em diversos momentos Marta se refere dessa forma aos assassinatos perpetrados por ela e sua mãe. É evidente a alusão às irmãs Marta e Maria, personagens bíblicas que no Evangelho de Lucas recebem Jesus em casa e aparecem como representantes respectivamente da vida ativa e da vida contemplativa:
E uma mulher, de nome Marta, recebeu-o em sua casa. Tinha ela uma irmã chamada Maria, a qual se sentara aos pés do Senhor e escutava a sua palavra. Marta, porém, andava atarefada, com muitos serviços e, aproximando-se, disse: “Senhor, não te incomodas que minha irmã me deixe sozinha no serviço? Dize-lhe, pois, que me venha ajudar.” O Senhor respondeu-lhe: “Marta, Marta, andas inquieta e perturbada com muitas coisas, mas uma só é necessária. Maria escolheu a melhor parte, que não lhe será tirada” (Lc, 10: 38-42).
Assim como temos, na Bíblia, a Marta atarefada, sempre trabalhando e a Maria aos pés de Jesus, escutando sua palavra, a Marta de O equívoco tivera uma existência injusta junto à mãe na estalagem, longe do sol e do mar, enquanto Maria ficara com “a melhor parte”, gozando durante anos a companhia de seu marido. Como a maioria de nós, Marta estava condenada ao trabalho, à conquista diária do pão e tinha que abrir mão do prazer e da realização de seus sonhos em função de uma rotina de esforço e de luta pela sobrevivência, que, no caso dela e da mãe, assume um caráter criminoso, mas, ainda assim, com os contornos racionais e a regularidade de um trabalho qualquer.
Como afirma a mãe, a inocência finda após o primeiro crime e o hábito começa no segundo (CAMUS, s/d, p.181), e, a partir daí, nada detém a revolta daquele que se julga vítima de uma injustiça. Em certo momento, ambas já cientes da identidade daquele a quem mataram, diz Marta:
Tudo o que a vida pode dar a um homem lhe foi dado. Deixou este país, conheceu outros horizontes, o mar, seres livres. Eu fiquei aqui. Fiquei no tédio, pequena e sombria, mergulhada no coração do continente e cresci na estreiteza das terras. Nunca ninguém beijou a minha boca e nem mesmo a mãe viu o meu corpo nu. Juro-lhe, mãe, isso deve ser pago (CAMUS, s/d, p. 268-269).
Marta se recusa a aceitar uma vida que lhe parece injusta e absurda, longe da liberdade e de uma felicidade que pensa existir em algum lugar. Seu quinhão na terra foi a solidão de um cotidiano frio e sem cor. Ela pensa que essa injustiça tem de ser reparada. Em O homem revoltado, escreve Camus que “A revolta nasce do espetáculo da desrazão diante de uma condição injusta e incompreensível” (CAMUS, 1999, p. 21).
Se existem crimes de paixão e crimes de lógica (CAMUS, 1999, p.13), certamente os crimes de Marta se encaixam no segundo tipo: ela é uma mulher revoltada, movida por uma lógica implacável que não recua diante do assassinato de um inocente que, aos seus olhos, torna-se culpado. Como um juiz, ela condena suas vítimas com uma racionalidade desprovida de sentimentalismos e em nenhum momento se arrepende dos seus atos. No diálogo final entre ela e Maria, esta questiona, desesperada, o porquê de seu marido ter sido morto pela mãe e pela irmã:
Marta:Em nome do quê me faz esta pergunta?
Maria:Em nome do meu amor!
Marta:Que significa essa palavra?
Maria:Significa tudo o que neste momento me dilacera e aflige, este delírio que abre as minhas mãos para o assassínio. Significa a minha alegria passada, a dor recente que acabo de receber. Se não fosse a obstinada descrença que me resta no coração, você saberia, sua louca, o que esta palavra significa, ao sentir as minhas unhas cravadas no seu rosto.
Marta:Decididamente está a falar de uma maneira que não compreendo. Eu não percebo bem palavras de amor, de alegria, ou de dor (CAMUS, s/d, p. 278-279).
Incapaz de compreender o significado dessas palavras, Marta pensa ter encontrado no crime uma forma de conexão com sua mãe, a única possível para ela. Mas nem mesmo o crime é capaz de lhe trazer a reconciliação, essa espécie de unidade que tanto almeja. Sua alma está cindida e mesmo entre ela e sua mãe há um divórcio: esta abandona-a para se atirar no rio ao lado do filho que acaba de assassinar. É o único momento da peça em que Marta parece realmente desesperar-se. Assim que sua mãe a deixa sozinha, ela desata em altos gritos:
Que as portas se fechem em volta de mim! Que me deixem entregue à minha cólera justa! Porque, antes de morrer, não levantarei os olhos a implorar aos céus. Nesse país onde se pode fugir, ser-se livre, apertar o corpo contra um outro corpo, rolar sobre as ondas – nesse país defendido pelo mar, os deuses não têm entrada. Mas aqui, onde o olhar esbarra por todos os lados, a terra inteira está desenhada para que o rosto se levante e o olhar mendigue... Oh! Como odeio este mundo em que estamos reduzidos a Deus! Mas eu, eu que sofro de injustiça, eu que não tive aquilo a que tinha direito – não me ajoelharei! Privada do meu lugar sobre a Terra, repudiada por minha mãe, sozinha no meio dos meus crimes, deixarei esse mundo sem me ter reconciliado (CAMUS, s/d, p. 273).
No país imaginado por ela não há necessidade de deuses, pois a natureza e os prazeres dos sentidos são suficientes; apenas na sua terra fria e cinzenta ela pensa ser necessário um deus, ao qual, no entanto, ela se recusa a apelar. É como se toda necessidade de transcendência fosse fruto da miséria do homem e, diante de uma natureza exuberante, fosse possível viver sem deuses e sem expectativas transcendentes, como o próprio Camus em Djemila:
Se recuso obstinadamente todos os 'mais tarde' do mundo, é porque se trata em verdade de não renunciar à minha riqueza presente. Não me agrada acreditar que a morte se abre para outra vida. Para mim é uma porta fechada. [...] E diante do vôo pesado dos grandes pássaros no céu de Djemila, é precisamente certo peso de vida que reclamo e obtenho (CAMUS, 1964, p.18).
Aqui, portanto, a situação em relação à passagem bíblica de Marta e Maria se inverte: é a primeira que se encontra mais próxima de deus, ainda que um deus um tanto peculiar.
Um deus silencioso... surdo
A figura do criado, na peçaO equívoco, é um elemento que merece uma atenção especial. Quem é esse personagem que entra e sai a todo o momento, sem pronunciar uma palavra sequer, como que alheio aos acontecimentos à sua volta? No início da peça, João, ao reservar o quarto, comenta com Marta a respeito do comportamento do velho, que não fala e não responde o que lhe perguntam:
João:O seu criado é um tipo muito estranho...
Marta:É o senhor a primeira pessoa que nos chama a atenção para qualquer coisa a respeito dele. Ele faz sempre por cumprir à risca a sua obrigação.
João:Perdão, isto não é uma censura. O que eu quero dizer é que ele não se parece com a maioria das pessoas. Ele é mudo?
Marta:Nada disso.
João:Então fala.
Marta:O menos possível, só o indispensável.
João:Em todo o caso, tem o ar de quem não escuta o que se lhe diz.
Marta:Não se pode dizer que ele não ouça. Simplesmente, ouve mal (CAMUS, s/d, 198-199).
A leitura de O homem revoltado mais uma vez pode fornecer uma resposta em relação à função desse personagem. Aliafirma Camus que
Se o revoltado metafísico volta-se contra um poder, cuja existência simultaneamente afirma, ele só reconhece a sua existência no próprio instante em que a contesta. Arrasta então esse ser superior para a mesma aventura humilhante do homem, com o seu vão poder equivalendo à nossa vã condição. [...] A revolta afirma desse modo que no seu nível qualquer existência superior é, pelo menos, contraditória. [...] O revoltado desafia mais do que nega (CAMUS, 1999, p. 40-41).
Portanto, o homem revoltado, na medida mesmo em que se volta contra um ser superior, o reconhece, mas apenas para destroná-lo, negar-lhe o caráter transcendente e arrancá-lo de seu refúgio metafísico, arrastando-o para a humilhante condição humana. O revoltado é antes um blasfemo que um ateu (CAMUS, 1999, p. 40), e o criado da peçaO equívoco é o deus de uma consciência revoltada, um deus que não está morto, como pretendia Nietzsche, mas é surdo, ou incapaz de atender aos apelos humanos. No final da peça, após o diálogo final entre Marta e Maria, em que esta grita desesperada, clamando: “Escutai-me, Senhor, dai-me a Vossa mão. Tende piedade dos que se amam e estão separados”, o velho criado aparece e, pela primeira vez, responde: “Chamou-me?”. Maria: “Oh, não sei! Mas ajude-me, preciso de alguém que me ajude. Tenha piedade, dê-me a sua ajuda”. Ao que o velho responde simplesmente: “Não!” (CAMUS, s/d, p. 286). Cai o pano.
Conclusão
A obra de Camus talvez não apresente uma sistematicidade e um rigor filosófico que permitam facilmente mapear as estruturas argumentativas, mas é possível, através da leitura dos ensaios O homem revoltado e O mito de Sísifo, identificar como os seus temas e preocupações principais aparecem nos trabalhos literários e formam um conjunto coerente.
A revolta da mãe e sobretudo a de Marta tem o caráter de uma revolta metafísica, em que o sujeito revoltado contrapõe o princípio de justiça que possui ao que encontra de injusto em sua situação de fato. Os crimes desencadeados por essa revolta são enfeitados com a inocência de quem pensa ter o direito de matar. O país com que elas sonham é um mundo puramente imaginado, uma espécie de paraíso perdido, onde a vida terrena e a natureza dispensam a necessidade de deuses e, ao confrontar essa vida imaginada com o seu cotidiano sombrio e cinzento, Marta e a mãe julgam-se no direito de aniquilar o outro. João, o filho pródigo, é a vítima expiatória que deve ser sacrificada para a sua salvação.
O sol, que em O mito de Sísifo termina por deflagrar o acontecimento que traz a desgraça para Meursault e sua vítima é também, em O equívoco, um elemento que motiva os crimes de Marta e sua mãe, na forma da ausência, como a nostalgia de uma felicidade almejada e nunca alcançada. Também o problema da autenticidade aparece nas duas obras, pois Meursault, incapaz de ocultar a sua apatia diante da morte da mãe, termina por fornecer os argumentos decisivos para a sua condenação, enquanto, por outro lado, João é morto por ocultar a sua verdadeira identidade.
Por fim, o criado da peça, figura enigmática, aparece como uma representação de deus para uma consciência revoltada, arrastado para a humilhante condição humana, quase surdo e privado de qualquer capacidade ou interesse em se comunicar com a humanidade. A sua palavra final, que encerra a peça, resume o absurdo da existência humana para a consciência revoltada: alheio, indiferente em sua bem-aventurança, ainda que escutasse os nossos apelos, responderia a eles com um sonoro “não”.
Referências bibliográficas
A BÍBLIA SAGRADA: Antigo e Novo Testamentos. Trad. de João Ferreira de Almeida. São Paulo: Sociedade Bíblica do Brasil, 1993.
CAMUS, Albert. Bodas em Tipasa. São Paulo: Difusão Europeia do Livro, 1964.
______. Calígula/O equívoco. Lisboa: Livros do Brasil, s/d.
______. Estado de sítio/O estrangeiro. São Paulo: Abril Cultural, 1979.
______. O homem revoltado. Rio de Janeiro: Record, 1999..