NIETZSCHE E A PERSONALIDADE COMO FUNDAMENTO DA FILOSOFIA
JASSON DA SILVA MARTINS
Doutorando, Filosofia, UFBA
Introdução
Em comemoração aos 150 anos da obra A filosofia na época trágica dos gregos, gostaria de apresentar e discutir algumas ideias-chave da compreensão de Nietzsche em relação à filosofia grega antiga. Quando se discute a importância dos pensadores pré-socráticos, é comum afirmar que muito devemos a Nietzsche. A sua compreensão e a sua apreciação deste período da filosofia ainda hoje são reveladores. Também é um fato que os pensadores pré-socráticos desempenharam um papel notável nas primeiras fases da evolução filosófica de Nietzsche.
Nietzsche iniciou a sua carreira como filólogo e foi graças ao seu trabalho filológico sobre Diógenes Laertios que ele concorreu e obteve a vaga de professor de filologia na Universidade de Basiléia. No entanto, foi breve, o seu sucesso nesta área. Alguns anos após a publicação do seu texto sobre Diógenes a sua tese central foi rejeitada. Em razão disso um possível convite para ser responsável pela edição da obra de Diógenes, por parte de Usener, nunca se concretizou.
Resta, então, justificar o motivo pelo qual o seu nome continua ligado aos filósofos pré-socráticos. Se não pelas suas contribuições filológicas, existe outra razão? Posso adiantar que a sua importância se deve, sobretudo, aquela ideia segundo a qual o valor dos pré-socráticos não vem de sua influência sobre o período posterior, mas da personalidade destas figuras epigonais. Somada a essa ideia, uma crítica à tradição historiológica já está em curso, neste período inicial da sua reflexão.
Uma nova imagem dos pré-socráticos
O retrato dos pré-socráticos “pintados” por Nietzsche faz deles representantes de uma relação com a filosofia original e autêntica que os séculos posteriores não compreendiam mais. Há duas principais razões pelas quais os sucessores não poderiam compreender estes pensadores:
A primeira pode ser resumida assim: a tendência das filosofias posteriores era hostil às ideias dos pré-socráticos, a tal ponto que a maneira platônica de filosofar foi intencionalmente separada pelos seus sucessores; a origem desta separação se mostrava através do moralismo e do eudaimonismo socrático, no uso do método dialético, no dualismo platônico, na teleologia aristotélica, na vulgarização global da filosofia através das escolas aristotélicas e, enfim, na união entre cristianismo e filosofia grega como oposição à filosofia da era “trágica” anterior.
A segunda razão é uma extensão da primeira, no interior da cultura grega: o modo de filosofar pré-socrático exigia dos filósofos uma profundeza e uma nobreza excepcional; mas com a decadência geral, política e cultural, dos séculos posteriores, a cultura grega tardia não estava mais em condições de produzir personagens tão nobres e igualmente excepcionais. No período trágico há um predomínio do “homem sábio” em detrimento do “filósofo teórico”. O resultado é que a filosofia pré-socrática, parece oferecer uma alternativa e uma maneira de filosofar superior, oposta ao declínio da época pós-trágica. Esse modo de filosofar, na perspectiva de Nietzsche, não se encarna jamais plenamente na sequência da história da filosofia ocidental.
Não é de filosofia que se trata, se compreendo bem, mas de exercer o papel de intérprete: cabe ao intérprete do pensamento arcaico a tarefa de apresentar os vestígios de um universo intelectual apto a completar as lacunas e as insuficiências do gênero da filosofia que se encontra favorecida pela historiografia tradicional.
Ao defender essa ideia geral, Nietzsche exerce uma influência considerável sobre a compreensão da filosofia pré-socrática, sobre a filosofia em geral e também sobre a filologia alemã. Não discutirei exaustivamente estas influências, no que segue. Apresentarei elementos contextuais do texto já citado – A filosofia na era trágica dos gregos –, em sintonia com um manuscrito que lhe deu origem – Os filósofos pré-platônicos –, visando apresentar aspectos relevantes e atuais sobre a origem da filosofia.
Breve apresentação dos manuscritos
As fontes mais importantes para conhecer o trabalho de Nietzsche sobre os pré-socráticos são dois manuscritos de 1869 e 1873. O primeiro remete à redação de um curso ou de um ciclo de conferências proferidas na Universidade de Basileia. Esse conjunto de conferências, anunciado para o verão de 1869, só foi pronunciados em 1872. Esse primeiro conjunto de textos possui como título Os filósofos pré-platônicos. Em 1873, Nietzsche revisa estas anotações de curso com o objetivo de preparar uma obra sobre a filosofia pré-socrática. Tudo leva a crer que ele pensava que este livro completaria, confirmando a partir do campo da filosofia grega, suas análises apresentadas em O nascimento da tragédia. O título que ele dá a este manuscrito mais tardio é A filosofia na era trágica dos gregos.
Embora o segundo manuscrito repousa sobre notas de cursos anteriores, o estilo dos dois textos é bem diverso. Em Os filósofos pré-platônicos, o autor se inclina longamente sobre a cronologia; as primeiras sessões, se esforçam para oferecer uma evolução exaustiva de todos os testemunhos disponíveis. Esse manuscrito comporta um grande número de referências e citações e o autor defende certas lições particulares. Já o manuscrito de A filosofia na era trágica dos gregos conserva apenas algumas hipóteses cronológicas, mas não apresenta argumentação para sustentá-las e defendê-las. Ele argumenta mais para sustentar certas interpretações, se contentando em fazer afirmações. É importante destacar que o segundo manuscrito raramente cita os filósofos que estão sendo estudados como objetivo destacar uma formulação própria. Nesse segundo manuscrito, o filósofo alemão sublinha que a sua análise da filosofia pré-socrática será incompleta e que esta incompletude é mesmo uma virtude.
Tudo leva a crer que o primeiro manuscrito foi redigido para estudantes de filologia e em um contexto biográfico em que o próprio Nietzsche se considera pertencente à comunidade dos filólogos. O segundo manuscrito não é mais nem escrito em um espírito filológico, nem destinado a seus colegas filólogos. Esta diferença global entre os dois manuscritos se explica pela publicação da obra O nascimento da tragédia e a controvérsia que a referida obra desencadeou.
Em Os filósofos pré-platônicos o autor apresenta Tales (§ 2, 3, 5, 6), algumas fases preliminares, notadamente Homero e Hesíodo (§ 4, 5), Anaximandro (§ 7), Anaxímenes (§ 8), Pitágoras (§ 9), Heráclito (§ 10), Parmênides e Xenófanes (§ 11), Zenão (§ 12), Anaxágora (§ 13), Empédocle (§ 14), Leucipo e Demócrito (§ 15), os pitagóricos (§ 16) e Sócrates (§ 17). O texto A filosofia na era trágica dos gregos permanece lacunar: apresenta a análise desenvolvida de Tales (sessão 3) Anaximandro (sessão 4), Heráclito (sessão 5 a 8), Parmênides (sessão 9 a 11), Zenão (sessão 12) e Anaxágoras (sessões 14 a 19), evoca rapidamente Xenófanes na sessão 10; se contenta em anunciar, sem desenvolver, uma análise de Empédocles, de Demócrito e de Sócrates.
Em Os filósofos pré-platônicos, Nietzsche pretende sublinhar que não se trata dos filósofos pré-socráticos mas pré-platônicos. Embora nos anos 1870, a terminologia em uso para a periodização da filosofia antiga não fosse tão estável como é hoje, era já corrente subdividir a filosofia grega distinguindo os filósofos pré-socráticos, socráticos e pós-socráticos. Contrastando com essa classificação dominante, falar de filósofos “pré-platônicos” permitia a Nietzsche incluir Sócrates, que ele considera como um dos pensadores “puros”, em oposição aos caracteres “mistos” que estreiam na filosofia com Platão:
No que segue, tentarei justificar por quê reúno os filósofos “pré-platônicos” em um mesmo grupo e não, por exemplo, os filósofos pré-socráticos. Platão é o primeiro grande caráter misto, tanto por sua filosofia como pelo tipo filosófico que encarna. Em sua filosofia das ideias reúne elementos socráticos, pitagóricos, heraclitianos; não se pode dizer que seja uma concepção original (NIETZSCHE, 2003, § 1, p. 19, grifos da edição).
É certamente correto que Platão representa, em algum sentido, uma mistura de certas escolas filosóficas anteriores. Por isso o fato que ele constitua um ponto de virada na história da filosofia possui alguma plausibilidade. Todavia, a maneira com a qual Nietzsche se serve da oposição entre caracteres puros e mistos comporta elementos relevantes da descrição mas também de avaliação: a identificação dos caracteres impuros com o declínio geral da cultura grega repousa sobre certas opiniões pessoais de Nietzsche a respeito da história da cultura grega em suas fases trágica e pós-trágica. Em A filosofia na era trágica dos gregos, Nietzsche mantém a mesma terminologia, mas retorna à designação mais tradicional de “filósofos pré-socráticos”. Por isso soa ambígua a descrição da figura de Sócrates na sua reconstrução da ascensão e declínio da filosofia grega.
De um lado, não resta nenhuma dúvida que Sócrates faça parte dos caracteres puros e, portanto, ele deve ser classificado no mesmo grupo de Anaximandro e Heráclito; por outro lado, é o seu caráter específico que suscita a decadência que sucedeu a “república-dos-gênios” (NIETZSCHE, 2011, § I, p. 35). Nesse segundo momento Sócrates não encarnaria mais um tipo puro visto que sua maneira de ensinar visa uma reforma moral, fazendo do saber o único meio que permitiria a virtude.
Por outro lado, Sócrates contribuiu para o declínio da filosofia ao fazer da virtude um bem comum acessível a todos, resultando desse fato o tipo de conhecimento do qual ele fala do gênio e das aptidões mais eminentes da razão humana. Esse é o motivo que leva Nietzsche a afirmar que Sócrates fez da filosofia uma tarefa puramente teórica, enquanto os filósofos anteriores haviam consagrado sua vida à filosofia e ao pensamento indistintamente. Compreende-se, então, a ausência de simpatia de Nietzsche para com os pensadores socráticos, visto que eles “simplificaram e vulgarizaram” a filosofia trágica, através da simplificação socrática. Outros elementos do contexto dos dois manuscritos podem ser encontrados no artigo de Marcelo Lion Villela Souto (2002).
A abordagem do tema e os objetivos
No prefácio de cada um dos manuscritos, Nietzsche sublinha o fato de que seu interesse pelos primeiros filósofos difere em tudo dos interesses habituais. O elemento principal de seu programa de investigação se atém antes de tudo a isso: ele não procura determinar a influência dos primeiros filósofos sobre a história posterior da filosofia; o foco central é destacar o papel decisivo destes filósofos no interior da cultura trágica grega. Essa forma de abordar o tema implica que ele considera a filosofia como um fenômeno típico da cultura grega que não poderia ser explicado à margem dos demais traços próprios aos começos da vida cultural grega.
Nessa perspectiva, a doutrina e a tese de determinado pensador é interessante à medida que ela diz algo do seu autor, de sua personalidade e sua ordem social. Nos primeiros manuscritos, em particular, Os filósofos pré-platônicos, alguns destes enunciados programáticos perdem, progressivamente, a sua importância em detrimento da abordagem e objetivos visados por Nietzsche:
Nós queremos perguntar: o quê podemos aprender do valor da história da filosofia grega para os gregos propriamente? E não: o quê podemos aprender para sua filosofia? Nos propomos explicar o fato de que os gregos fizeram filosofia; isto é algo que, desde a opinião dominante, não é evidente por si (NIETZSCHE, 2003, § 1, p. 17, grifos da edição).
Fica claro que o objetivo da sua investigação sobre a primeira filosofia grega não é determinar aquilo que os filósofos gregos originais legaram ao desenvolvimento da filosofia posterior e sim uma investigação sobre estes mesmos filósofos destinada à compreender os próprios gregos, quer dizer, a cultura grega, durante este primeiro período, caracterizado como “trágico”. O primeiro projeto não lhe interessa, provavelmente à medida que a partir daí é possível pensar os primeiros filósofos como simples preliminares de um gênero de filosofia mais importante, mais refinado. Ao escolher a perspectiva oposta, Nietzsche indica que ele não admite a suposta superioridade do período clássico sobre o período pré-socrático e que ele não aceita mais a história da filosofia do tipo teleológica que avalia a primeira época como sendo “imatura”, à luz da pretensamente madura e plenamente desenvolvida época clássica.
O objetivo de Nietzsche não consiste somente em compreender os primeiros filósofos gregos a partir de sua filosofia, mas também explicar o fato de eles praticarem a filosofia a partir de traços particulares desta mesma época e desta mesma cultura. Na sequência do texto, citado acima, ele explica que dada as opiniões dominantes ao sujeito grego, a saber, seu caráter exclusivamente racional, harmonioso, sóbrio e realista, é impossível dar uma reposta a esta última questão – porquê foram eles que praticaram filosofia? Esse tipo de comentário permite tirar uma conclusão sobre o tipo de resposta ou de explicação: ele se apressa em afirmar que os primeiros filósofos eram constituídos pelos elementos não racionais, não harmoniosos, etc. de seu caráter, e que estes traços eram justamente típicos da primeira cultura grega em geral (Cf. BULHÕES, 2020). Se a motivação da filosofia deveria está intimamente ligada à cultura grega, à aparição da filosofia não poderia ser um fenômeno contingente, mas sim necessário para os gregos. É por isso que ele afirma em A filosofia na era trágica dos gregos:
Apenas com os gregos o filósofo não é ocasional: quando nos séculos sexto e quinto, ele surge sob os enormes perigos e seduções da laicização, despontando, por assim dizer, da caverna de Trofônio rumo ao centro da prodigalidade, do prazer das descobertas, da riqueza e sensualidade das colônias gregas, pressentimos então que, qual um nobre anunciador, ele vem à baila com a mesma finalidade com a qual, naqueles séculos, a tragédia nasceu e com a qual os mistérios órficos se nos dão a conhecer nos grotescos hieróglifos de suas práticas (NIETZSCHE, 2011, § I, p. 36-37).
Aquilo que motiva a filosofia está inevitavelmente ligado à certos traços essenciais da primeira cultura grega e visto que para Nietzsche, esta se caracteriza essencialmente pelo fenômeno do “trágico”, não é surpreendente que ele explique explicar o fenômeno filosófico precisamente em função dos traços emprestados à cultura grega que também desempenha um papel crucial em suas ideias relativas às origens da tragédia. Estes paralelos com a tragédia são mais explícitos no segundo manuscrito, que ele começa a redigir após a obra A origem da tragédia.
Seu objetivo é situar e explicar a origem da filosofia, centrada no seu caráter trágico, a partir dos autores e da cultura em que estes estão imersos. Não se trata de compreender extensivamente a origem através do que foi legado a posteridade. Como justificar, filosoficamente, esta interpretação? Contra as alegadas origens extra-helênicas da filosofia, Nietzsche destaca o seu interesse pela ligação reputada necessária entre a cultura grega e o surgimento da filosofia. O jovem filólogo ensaia detectar os elementos imanentes à cultura helênica e renega a tese de possíveis origens exteriores ao mundo helênico.
Em se tratando da origem é sempre mais instrutivo considerar o estado de desenvolvimento de uma coisa em seus começos grosseiros e inacabados. Este caminho é sempre um caminho que conduz à barbárie. Esta estratégia de argumentação possui fortes acentos aristotéicos, e é notável ver Nietzsche adotar aqui esse tipo de argumento visto que, em outros contextos, ele teria rejeitado as implicações teleológicas.
Não se engane, caro leitor, é provável que este argumento teleológico geral constitui um pretexto para rejeitar a tentativa de reunir certos motivos da primeira filosofia grega às das fontes extra-helênicas, uma vez que no texto A filosofia na era trágica dos gregos, Nietzsche zomba dos paralelos que alguns autores contemporâneos se esforçam por traçar entre os filósofos gregos e, principalmente, as culturas orientais: “Zoroastro ao lado de Heráclito, os hindus ao lado dos eleatas, os egípcios ao lado de Empédocles ou até mesmo Anaxágoras entre os judeus e Pitágoras entre os chineses” (NIETZSCHE, 2011, § I, p. 33).
Nietzsche declara se interessar antes de tudo pelos tipos puros de filósofos. A seus olhos, apenas os primeiros pensadores, Sócrates incluído, representam tais tipos puros, enquanto que com Platão, o primeiro caráter híbrido esplêndido, começa alguma coisa de totalmente novo, mas incomensurável com o que veio antes. Resulta imediatamente dessa perpectiva que com todo rigor, Nietzsche não se interessa pelas teorias, mas pelas personalidades. Esta busca sobre os diversos tipos de filósofos tem como consequência a escolha da personalidade, em detrimento das obras, o que o leva a se interessar por seu modo de vida, seu caráter, sua atitude relativamente à política, suas realizações públicas etc. Mais de uma década depois, em seu estudo introdutório sobre os diálogos de Platão, ele reafirma: “Para compreender corretamente a vida, precisamos ter como regulativa uma imagem de conjunto psicológica” (NIETZSCHE, 2020, p. 183).
Nietzsche considerava que um pequeno número de anedotas seria suficiente para caracterizar a personalidade de um filósofo. Ele se interessa sobretudo por caracterizações mais gerais, por exemplo, a nobreza, o orgulho e a solenidade de Heráclito. Em oposição à origem plebéia e ao caráter plebeu de Sócrates. Ou o pessimismo de Anaxágoras e o espírito agonal de Empédocles, etc. Esses traços de caráter só são evocados à medida que eles parecem ligados a certos elementos que dizem respeito à sua posição filosófica.
Nietzsche utiliza esse princípio geral à medida que ele procura descrever o estado de espírito que um filósofo atingiu para identificar uma tese filosófica importante. Por exemplo, a tese de Heráclito que vê que a constante mudança no mundo obedece a uma singularidade é encadeada na descrição de um êxtase excepcional que Heráclito conheceu em sua vida e que estava ligado de uma maneira ou outra ao sentimento de extrema solidão que ele experimentava. A ideia parmedineana de assentar seu pensamento sobre o ser puro é apresentada como uma descoberta que lhe deve ter ocorrido em sua velhice pelo fato que esse tipo de abstração é inteiramente anêmico, o que, conclui Nietzsche, deveria ser o estado de Parmênides.
Se o foco é a personalidade, a verdade ou a falsidade da doutrina de um filósofo torna-se uma questão secundária: “Para a apresentação histórica de um grande homem, a maneira mais dileta é a de pressupor um paralelismo entre suas vivências externas e suas mudanças internas” (NIETZSCHE, 2020, p. 18). E é isso que Nietzsche pretende: é possível refutar as doutrinas e os sistemas, mas não a dimensão individual ou pessoal de um filósofo. Embora os sistemas sejam refutados e ultrapassados, mantém-se o interesse pela personalidade específica e irrefutável de um filósofo:
Optou-se, no entanto, por aquelas doutrinas nas quais ressoa com mais intensidade o que há de pessoal num filósofo, ao passo que uma enumeração completa de todas as proposições possíveis que nos foram deixadas, tal como é de praxe nos manuais, só traz, em todo caso, uma coisa à baia, a saber, o completo emudecimento diante do que há de pessoal. Eis porque aqueles relatos terminam por se tornar tão tediosos: pois em sistemas que foram refutados, apenas o que há de pessoal pode interessar-nos, haja vista ser isto o eternamente irrefutável (NIETZSCHE, 2011, Segundo prefácio, p. 29).
É portanto marnifesto que Nietzsche entende tratar os tipos como espécies raras de filósofos, mas permanece a dúvida a respeito da natureza desses tipos raros e suas quantidade. O número de tipos originais varia, em suas diferentes listas, de três (Pitágoras, Heráclito, Sócrates) a oito. Igualmente obscuro é o princípio de divisão em função do qual Nietzsche distingue os tipos autênticos dos tipos impuros, bem como a razão pela qual aqueles pré-socráticos que não obtiveram o assentimento de Nietzsche (por exemplo Anaxímenes, Parmênides) concorda com o rótulo de filósofos puros e originais.
Por fim, um outro aspecto da interpretação de Nietzsche fica evidente: é preciso completar, criativamente, a biografia para ressaltar a personalidade, quando faltar dados objetivos. Não há motivo para lamentar, portanto, que os textos mais explêndidos da filosofia antiga não tenham chegado até nós. A tarefa é tanto filosófica quanto artística: “devemos completar o essencial das imagens destes filósofos e de suas doutrinas de maneira criativa” (NIETZSCHE, 2003, § 1, p. 20).
No segundo manuscrito, A filosofia na era trágica dos gregos, ele não lamenta a falta de documentos dessa época e acha suficiente o que temos para o que ele pretende fazer: “não nos seria mais necessária a transmissão de nenhuma outra palavra, anedota ou data além daquelas que já nos foram transmitidas...” (NIETZSCHE, 2011, § II, p. 41), visando apreender o carater essencial, típico, autêntico de cada filósofo.
Conclusão
A máxima de “acréscimo criativo” representa uma distorsão considerável em relação às técnicas filológicas que constituem o ponto de partida de Nietzsche. O argumento é em defesa própria: os textos transmitidos não constituem a única autoridade e o método do acréscimo criativo exige uma espécie de conhecimento íntimo imediato das motivações “reais” de um filósofo. Este conhecimento surge mais da empativa do autor com o tema estudados do que da investigação filológica ou filosófica, classicamente definida como ciência.
Acredito a atualidade e a importância da reflexão de Nietzsche sobre os pré-socráticos continua tendo impacto na forma atual de pensar a filosofia antiga uma vez que a interpretação contemporânea lhe dá razão e ratifica o seu ponto de vista.
Exaltar a personalidade em detrimento da obra continua sendo possível apenas no caso dos filósofos antigos. Essa tese não pode ser aplicada aos filósofos modernos e contemporâneos. Afinal, qual o interesse filosófico aurido de elementos biográficos da vida de Kant, em desfavor de sua obra, poderia corroborar com a compreensão de sua filosofia?
Referências
BULHÕES, Fernanda Machado de. Antes da lógica, o ilógico: Nietzsche e a verdade mística dos pré-socráticos, Princípios, v. 27, n. 53, maio-ago., 2020, p. 163-175.
NIETZSCHE, Friedrich. Los filósofos preplatónicos. Madrid: Trotta, 2003.
______. A filosofia na era trágica dos gregos. São Paulo: Hedra, 2011.
______. Introdução ao estudo dos diálogos de Platão. São Paulo: Martins Fontes, 2020.
SOUTO, Marcelo Lion Villela. “Lições sobre os filósofos pré-platônicos” e a A filosofia na época trágica dos gregos: um ensaio comparativo. Cadernos Nietzsche, n. 13, 2002, p. 37-63.