Borbocriar: voando espontaneamente ao criar
Edgar Franco Ciberpajé
Há anos tenho realizado exercícios de criação de narrativas curtas de forma totalmente livre e experimental. Venho quebrando com a tradição normatizada para a geração de uma história em quadrinhos que, comumente, parte de um roteiro prévio e um rascunho à lápis de toda a quadrinhização, antes da inserção da arte final. Pois bem, a HQ “Borbocriar” quebra com esses paradigmas e, como boa parte de meus quadrinhos, foi criada espontaneamente diretamente à pincel e caneta nanquim sobre papel.
O processo criativo intuitivo fruitivo nasceu do primeiro desenho criado despretensiosamente, um ser com uma longa túnica, com uma grande gola, de barba longa e cabelos no estilo dos punks oitentistas. Essa criatura, intuitivamente uniu os signos da rebeldia punk à serenidade característica dos monges zen budistas. Neste caso a rebeldia de ir na contramão de um mundo hiperprodutivista, hipercompetitivo e focado no pragmatismo, na busca por resultados objetivos, onde toda ação deve ter um resultado claro e agregar algum valor, de preferência imediato. Nesse mundo contemporâneo o flâneur não cabe mais, o ser errante, que passeia livremente, que frui a existência sem objetivos, sem demandas, é execrado.
Olhando para o desenho surgiu-me a ideia de desenhar borboletas voando próximas de sua mão estendida serenamente. Então resgatei uma figura icônica de outras de minhas HQs, a criadora de borboletas, que já havia aparecido em 2 de minhas narrativas curtas, no quadrinho de 1 página “Razão”, parceria minha com o lendário mestre dos quadrinhos Julio Shimamoto, publicada no álbum “Duetos Essenciais” (Marca de Fantasia, 2017), e na HQ de 3 páginas, “Extremos”, publicada no número 5 da revista Metal Pesado (1997). No entanto, nesses dois casos, a criadora de borboletas era uma figura feminina. Surgiu então a oportunidade de apresentar agora um criador de borboletas e imediatamente me veio à mente o título neologismo da HQ “Borbocriar”.
Desenhei o segundo quadrinho para ressaltar a serenidade do ser que aparece com a face de olhos fechados. Na segunda página, também desenhada sem rascunho prévio, destaco na parte superior a face do ser de perfil com uma longa língua saindo de sua boca – enfatizando tratar-se de um tecnogenético de meu universo ficcional da Aurora Pós-Humana – e na parte inferior mostro o ser com uma das borboletas escuras pousada sobre os seus olhos, denotando o mergulho para o interior, o encontro com os próprios abismos na busca do equilíbrio.
Comecei a desenhar a terceira e última página a partir da imagem do ser flutuando no ar rodeado pelas borboletas, uma referência direta à levitação que é uma proposição mítica e mística de algumas escolas da filosofia oriental. O flutuar aqui representa a leveza do nada desejar, do nada buscar, a maravilha do fruir a experiência do agora. Para terminar desenhei em primeiro plano uma borboleta com olhos em suas asas sendo que um deles está fechado – representando aquele que observa o mundo, mas não deixa jamais de olhar para dentro de si, para suas sombras.
Por fim, após observar por algum tempo as 3 páginas prontas, escrevi também o texto, sem nenhum rascunho prévio e diretamente nas páginas com minha letra peculiar. Um texto que dialoga com as imagens, criando um jogo narrativo em que eles se interconectam para reforçar os sentidos propostos. Assim, na primeira página escrevi simplesmente “Tornei-me um criador de borboletas”, ressaltando a transmutação do tornar-se algo. Na segunda página o texto vai contra o hiperpragmatismo contemporâneo e diz “Sem nenhum objetivo que não seja vê-las voar. Tocá-las e sentir o seu toque.” E finalmente, na última página, o texto “E ao nada desejar eventualmente com elas começo a voar” ressalta o resgate da livre e espontânea poesia do viver sem objetivos, sem autocobranças extremas, sem hipercomparações, conectando-se com os desenhos.
*O Ciberpajé é Edgar Franco, recebeu o prêmio Argos de Literatura Fantástica (2021) e o Troféu Angelo Agostini de Mestre do Quadrinho Nacional (2022). Criador do universo ficcional da Aurora Pós-Humana, com o qual tem realizado obras em múltiplas mídias e suportes. É um dos pioneiros brasileiros do gênero poético-filosófico de quadrinhos. Pós-Doutor em arte e tecnociência pela UnB, Pós-Doutor em arte, performance e quadrinhos pela Unesp, doutor em artes pela USP, mestre em multimeios pela Unicamp e professor permanente do Programa de Pós-Graduação em Arte e Cultura Visual da UFG, onde coordena o Grupo de Pesquisa CRIA_CIBER há 14 anos.