Infocracia e dominação subjetiva digital
Renato Nunes Bittencourt
Doutor em Filosofia pelo PPGF-UFRJ. Professor do Curso de Administração da FACC-UFRJ
O que chamamos de Cibercultura é o conjunto de fenômenos comunicacionais da revolução informacional ocasionada pela expansão da Internet pelo nosso mundo e suas inevitáveis mudanças comportamentais que estabeleceram a transição do analógico para o digital.Quem viveu a transição entre o mundo anterior aos paradigmas da Internet e a instauração da grande rede sabe muito bem o quanto as formas comunicacionais e as relações sociais foram modificadas com essa revolução tecnológica, alterando inclusive nossa percepção de tempo e de espaço. Uma carta enviada para nosso destinatário demorava dias para chegar e eventualmente corria-se o risco do extravio, de modo que os correios atuavam como uma grande força da contingência em nossa vida administrada.
A comunicação virtual aos poucos eliminou esse risco e a necessidade de aguardarmos pacientemente uma resposta de nosso interlocutor. Aliás, a troca de correspondência outrora era uma das mais sofisticadas formas de intercambio intelectual entre a comunidade de sábios. Os insípidos e-mails, não obstante sua tecnicidade instrumental que dinamizam nossa comunicação prosaica, suprimiram o glamour dos epistolários.
A Internet promove o dispositivo da dromocracia, que nada mais é que a efetivação do poder da velocidade em nossas organizações e formas de vida. Com efeito, a cada momento as interações comunicacionais se aceleram e conectam de alguma forma toda a humanidade na grande rede. A Cibercultura foi celebrada filosoficamente como a realização de uma grande utopia, capaz de promover a integração mundial de forma muito mais intensa do que a política tradicional, considerada engessada e formalista demais. A Cibercultura, nessa esperança imanente análoga ao milenarismo, promoveria uma grande democracia global e dissolveria progressivamente as barreiras nacionais. Tal como apregoado por Pierre Lévy,
As atividades de pesquisa, de aprendizagem e de lazer serão virtuais ou comandadas pela economia virtual. O ciberespaço será o epicentro do mercado, o lugar da criação e da aquisição de conhecimentos, o principal meio da comunicação e da vida social (LÉVY, 2001, p. 51).
Contudo, apesar das realizações informacionais da Cibercultura e suas interfaces, velhos problemas do passado continuam se manifestando nas brechas jurídicas e operacionais da Internet, como manifestações racistas, homofóbicas, xenófobas e outras modalidades de discurso de ódio. Obviamente que a Internet não é responsável por isso, mas sim a ausência de efetivo controle jurídico sobre essas manifestações que se caracterizam pelo mais cru anti-humanismo, e, portanto, negam a essência dos fundamentos modernos de nossa estruturação civilizacional. Parece que o vigoroso espírito do Esclarecimento foi obnubilado pelo obscurantismo ideológico, e assim a fraternidade humana é destruída pela apologia da violência contra qualquer pessoa que não pertença ao nosso limitado campo axiológico.
A Internet, longe de se constituir como uma esfera coletiva libertária e democrática tal como almejada pela utopia virtual, é controlada pelo grande capital corporativo, e as empresas detentoras das diretrizes tecnokógicas mais avançadas determinam os fluxos econômicos que forjam nossa sociabilidade virtualizada. Todas as mudanças nas relações informacionais sempre partiram de pressupostos humanistas e cosmopolitas, mas descambam em terríveis modulações verticalizadas que satisfazem a perpetuação ideológica das desigualdades socioculturais. A integração humana prometida pelo caráter inovador das tecnologias da informação é uma promessa vazia e seletiva, pois promove engajamento político apenas quando convém para a esfera pública.
Sabemos que as redes sociais não seguem fluxos espontâneos na difusão dos conteúdos, mas atuam em conformidade com os algoritmos e seus inerentes processos automatizados de decisão, hierarquizando os conteúdos que alcançam os usuários conforme critérios que nos são imediatamente alheios. A relação informacional sob os algoritmos é, portanto, alienada, ou seja, nos é estranha e não reconhecemos as suas particularidades totais e os seus respectivos dados. Recebemos apenas o que é previamente estabelecido ou que de algum modo denota os nossos próprios anseios de gosto, de consumo e de valor, fortalecendo assim uma espécie de endogenia informacional, já que raramente conseguimos ir além da bolha digital que nos cerca com seus estímulos padronizados de aderência por algo. A Internet apenas reforça nossas inclinações prévias dando-nos a falsa sensação de liberdade de escolha. Nada está fora do controle disciplinar do grande regime do Panóptico Digital, que não é um espaço territorialmente determinado, mas uma força ubíqua que nos monitora sem que possamos vê-la. Nenhuma informação é desperdiçada pelo poder assimilador da grande rede virtual, circunstância que retrata muito bem o utilitarismo do capitalismo informacional, que aproveita toda manifestação digital, transformada em dado, como um recurso vendável.
Um tipo de situação bastante peculiar do aprofundamento técnico da Cibercultura está no que chamamos de “ansiedade algorítmica”, que se caracteriza, no multiverso difuso das redes sociais e seus influenciadores digitais, pela necessidade de produção de conteúdos que alcancem cada vez mais usuários e assim impactem as suas percepções, como também da necessidade imperiosa de se manter essa massa digital mobilizada. Trata-se de uma reconfiguração ultramoderna da sociedade do espetáculo, em que as imagens determinam nosso ser social mediante a imposição constante da aparição pública. No entanto, no desenvolvimento da Cibercultura, essa experiência se tornou extremamente rentável mediante a monetização dos conteúdos através do impacto gerado sobre os usuários sintonizados. Quanto maior o impacto, maior o retorno financeiro para o criador de conteúdo digital. Temos assim uma espécie de corrida informacional em que não apenas a velocidade de difusão dos conteúdos como também a percepção dos horários adequados para sua transmissão são fundamentais para o devido impacto informacional sobre nossos presumidos interlocutores. Mais do que “ser é ser percebido”, vigora agora “ser é ser curtido”. A produção de conteúdo deve não apenas ser vistapela humanidade digital em seu olhar superexcitado e hipertrofiado, mas também impactá-la e orientar a sua conduta para assim forjar novos hábitos e gostos, sempre em um ritmo processual acelerado, pois nada pode permanecer estável por muito tempo no regime digital. Mais uma vez percebemos assim os impactos da dromocracia na confecção de nossa existência, e quem consegue conhecer bem esses códigos digitais se torna um possível senhor de si mesmo capaz de influenciar com mais precisão as pessoas, com a devida licença semântica. De acordo com Byung-Chul Han,
A técnica digital da informação faz com que a comunicação vire vigilância. Quanto mais geramos dados, quanto mais intensivamente nos comunicamos, mais a vigilância fica eficiente. O telefone móvel como aparato da vigilância e submissão explora a liberdade e a comunicação (HAN, 2022, p. 13)
A matemática, de onde deriva a programação algorítmica, é uma das chaves para a compreensão da produção de conteúdos digitais, e negligenciar esse conhecimento resulta na submissão irrefletida aos imperativos bastante interessados das Big Techs. Os influenciadores digitais visam promover um uso pragmático das funcionalidades digitais e toda incerteza acerca da capacidade de impactar a legião de seguidores e alcançar mais além acomete esse segmento comunicacional de afetações estressantes que podem inclusive ocasionar situações mais graves de esgotamento psicofísico. A Síndrome de Burnout é global, pois acomete qualquer segmento laboral humano, inclusive o nicho mercadológico da informação. Não basta existir, é necessário aparecer e permanecer em evidência, criando-se sempre mais e mais impacto junto ao público consumidor de imagens e de conteúdos. O discurso digital deve não apenas agradar, mas engajar, e assim o influenciador jamais pode esmorecer em suas atividades, permanecendo mais e mais alinhado com os gostos dos usuários, de modo a se evitar situações de cancelamento, como também se antecipar aos seus anseios informacionais, produzindo conteúdos novos. A neofilia é soberana na Infocracia. A obrigação autoimposta de ser original é fator de angústia, pois nem sempre conseguimos inovar naquilo que produzimos. Trata-se assim de uma grande pressão informacional, que no fundo prejudica o estilo e a autenticidade dos atores envolvidos nesse processo acelerado de difusão de dados.
Muitos influenciadores digitais conseguem obter uma excelente margem de lucratividade com o manejo hábil das tendências vertiginosas das redes sociais que preenchem o nosso imaginário social. Todavia, para quem não consegue mobilizar uma escala massiva de seguidores a sensação de impotência moral e de fracasso se manifestam na subjetividade do criador de conteúdo, exaurindo sua vitalidade, uma vez que ocorre algo como que uma perda da capacidade de engajar. A sensação de cansaço que ocorre usualmente no profissional incapaz de se desconectar da rotina laboral na sua empresa é similar à que acomete o influenciador digital. A dinâmica autofágica da organização cronométrica exige a confusão entre o tempo de engajamento e o tempo de repouso, cada vez mais suprimido. A atenção permanece sempre em vigília para não ocorrer nenhum prejuízo operacional. Vive-se assim em uma espécie de prisão informacional, mais sutil do que a crosta de ferro da Modernidade e sua racionalização instrumental da realidade concreta, mas que é também tão supressora da singularidade individual como as configurações originais do poder técnico do passado gerencial-disciplinar. Para Byung-Chul Han,
Estamos, hoje, aprisionados em uma caverna digital supondo estarmos em liberdade. Estamos agrilhoados na tela digital. Os prisioneiros da caverna platônica estão inebriados pelas imagens mítico-narrativas. A caverna digital, por sua vez, nos mantém aprisionados em informações (HAN, 2022, p. 106).
A comunicação genuína se pauta pela alteridade, pela capacidade de reconhecer o outro como um interlocutor multidimensional e assim respeita sua subjetividade e sua temporalidade. O trabalho remoto e sua parafernália tecnocrática satura a subjetividade humana de informações heteróclitas que levam ao desajuste psicofísico, pois a mente permanece mobilizada para absorver qualquer tipo de conteúdo. A vida digital dispersa pelas redes sociais e aplicativos também se molda por essas características de aderência aos estímulos digitais. A Infocracia, poder da informação, é unilateral, impositiva, irrefletida, acelerada. Vivemos saturados de informações que não possuem poder formativo. Informar não é formar, cabe destacar. Por isso o discurso do influenciador digital deve ser o mais simples possível, conciso e um tanto lúdico, de modo a agradar por sua brevidade e leveza. Toda profundidade é condenável. Temos assim uma espécie de sociedade autocentrada, isto é, incapaz de compreender as totalidades dos eventos sociais de maneira ampla, mas apenas em seu reduzido âmbito perceptivo, prejudicando então sua capacidade de avaliar e de julgar. Para que essa massa digital seja cooptada por um demagogo hábil em manipular os afetos difusos de uma sociedade intelectualmente desorientada e incapaz de meditar temos apenas uma pequena distância, para malgrado da combalida democracia substantiva. O autoritarismo se forja por bases instrumentais intelectualmente grosseiras e simplistas, pois o uso da força é sua matriz operacional fundamental. O consumidor de informações, desprovido da paciência do conceito e da capacidade de introspecção que o leva a ponderar bem em suas decisões, aprova assim a mediocridade argumentativa do líder disruptivo que adentra na virtualização da cena política para atrair uma legião de seguidores idiotizados. A extrema-direita, defensora de uma cruenta lógica de mercado individualista e eugenista, encontra nos oligopólios das Big Techs um anteparo político crucial para sua marcha reacionária pelo mundo colapsado pela ameaça de uma guerra mundial definitiva e pelo supressão da saúde da Biosfera.
Não existe talvez solução para esse grande problema da cultura digital, e desejar a abolição das redes é uma medida que não resolve a questão. Uma reeducação digital talvez ajude nossa geração a valorizar mais o conteúdo crítico, mas também não promove condições plenas de empoderamento intelectual. Uma solução razoável está na desmistificação dos processos algorítmicos e maior controle social sobre as Big Techs, empresas que lucram sobremaneira com a toxicidade discursiva e o embotamento dos sentidos da massa digital, cada vez menos cidadã, cada vez mais massa de consumonão apenas para serviços, mas também de padrões de vida. Muda-se apenas a atmosfera perceptiva, mas a estrutura de dominação é a mesma. Sempre importante destacar, as redes sociais não operam através da espontaneidade, mas da padronização impositiva de estilos e tendências sobre os seus usuários seduzidos pela miríade informacional. Uma espécie de autoritarismo digital que certamente ludibria o usuário pelo fato de que há a crença de que se pode a qualquer momento se desconectar de tudo e voltar ao mundo analógico. A sabedoria prática de vida nos ensina que sempre é razoável fecharmos um pouco os olhos e nos interiorizarmos e deixarmos o que nos acomete de sofreguidão para cuidarmos melhor de nosso jardim. A Cibercultura, de todo modo, é um projeto inacabado.
Referências
HAN, Byung-Chul. Infocracia: digitalização e a crise da democracia. Trad. de Gabriel S. Philipson. Petrópolis: Vozes, 2022.
LÉVY, Pierre. Cibercultura. Trad. de Carlos Irineu da Costa. São Paulo: Ed. 34, 1999.