cefslogo

Entre Butler e Saïd:
Uma breve reflexão sobre a dimensão trágica do mundo e o papel do intelectual

Cassiana Lopes Stephan
Doutora em Filosofia - UFPR

1. A tragicidade do mundo
O assunto sobre o qual vou discorrer não é fácil de ser elaborado. Trata-se de um assunto complicado do ponto de vista teórico-filosófico, mas também de um assunto que mexe com nossos afetos, já que nos coloca face-a-face com a dimensão trágica do mundo que, como nos explica Butler – no capítulo “Sensesofthe world: ShelerandMerleu-Ponty”, da recente obra What world isthis?

A PandemicPhenomenology(2022) –, manifesta-se na seguinte exclamação: “'que tipo de mundo é esse no qual esse tipo de coisa pode acontecer!'” E Butler continua dizendo: “não se trata apenas desse evento, dessa perda ou da destruição desse valor, mas do mundo no qual tal tipo de destruição é possível ou, talvez, do mundo no qual tal destruição se tornou possível” (BUTLER, 2022, p.24). Como isso é possível nesse mundo? Constantemente nos perguntamos diante dos quadros de guerra que nos fazem despertar para as crises cósmico-democráticas que nos assolam, ao mesmo tempo, em diferentes lugares: quadros de guerra que presenciamos diariamente, nas esquinas de nossas casas envolvidas pela cenas violentas de busca e apreensão, de polícia e ladrão; quadros de guerra que presenciamos diariamente se abrimos os olhos e os ouvidos para ver o que acontece com nossos irmãos mais distantes como é o caso, por exemplo, dos palestinos.
Se estamos minimamente conectados com o mundo, então, inevitavelmente nos ressentimos com a humanidade que somos, com a humanidade na qual nos tornamos. Se estamos minimamente conectados com o mundo – e por “conexão” compreendo uma ligação afetiva e não calculativa ou de mercado (pois isso não é e nunca será conexão) –, então, inevitavelmente sentimos vergonha de sermos quem somos e de fazermos do mundo um lugar ultraviolento, de fabricarmos compulsoriamente cenários catastróficos, tanto à nível humano quanto não-humano.
E muitos podem estar pensando: mas eu não sou violento, não sou eu o responsável por catástrofes humanas e mais-que-humanas. A esse indivíduo que acha que é individual, a esse indivíduo que ingenuamente concebe que seu eu não está coimplicado ao eu dos tantos outros com os quais ele compartilha e, paradoxalmente, constrói um mundo destrutivo, Butler diria: o fato é que eu “estou parcialmente contida fora de mim, em você, e isso que você joga em minha direção é carregado por mim. Portanto, há uma maneira pela qual residimos um no outro” (BUTLER, 2020, p.99). Essa afirmação butleriana, que encontramos no capítulo “To Preserve the Life ofthe Other” da obra The force ofnonviolence(2020), permite-nos imaginar a irrefutável, embora constantemente forcluida, hibridização do eu e do outro, do eu que também é outro e do outro que também sou eu.
Se o eu está parcialmente contido no outro e o outro no eu, então, podemos afirmar que os diferentes se interconstituem, de modo que, por exemplo, o policial reside no ladrão e o ladrão no policial; o judeu reside no palestino e o palestino no judeu. A imagem da hibridização identitária nos permite concluir, como explica Butler, que o “'eu' vive em um mundo em que a dependência só pode ser erradicada pela autoerradicação” (Ibidem.). E aqui nos deparamos com o outro lado da moeda da tragicidade cósmica: a trágica ironia da interdependência corresponde à coimplicação entre a destruição do outro e a minha autodestruição. Isso significa, portanto, que a indiferença típica de um eu triunfalista não passa de uma grande ilusão que se fundamenta no ideário de uma identidade fixa e pura.
Não adianta fugir: somos interdependentes e estamos constantemente coimplicados às catástrofes humanas e mais-que-humanas, não há escapatória. Como afirma Butler, “as vidas estão implicadas umas nas outras desde sempre, e essa percepção indica um caminho para compreendermos que, qualquer que seja a ética que adotarmos, ela não será suficiente para distinguirmos entre o preservar a si mesmo e o preservar o outro” (BUTLER, 2020, p. 87). Para visualizarmos a interdependência e a ambivalência ou hibridização identitária sobre a qual fala Butler, também podemos recorrer a Edward Saïd. No artigo “Identity, Authority, andFreedom: The PotentateandtheTraveler”, publicado em 1994, Saïd deixa claro que não há escapatória; que não há, por exemplo, escapatória territorial e cultural, visto que:

Historicamente, toda sociedade tem seu Outro: os gregos tiveram os bárbaros, os árabes os persas, os hindus os muçulmanos, e assim por diante. Mas desde que o séc. XIX consolidou o sistema do mundo, todas as culturas e as sociedades estão hoje misturadas. Nenhum país na terra é feito de nativos homogêneos; cada país tem seus imigrantes, seus “Outros” internos, e cada sociedade, muito semelhantemente ao mundo em que vivemos, é um híbrido (SAÏD, 1994, p.11).

Nesse mesmo artigo, Saïd também deixa claro que não há escapatória político-identitária ou psíquico-identitária. Na tentativa de materializar quão ambivalente e controversa é a sua identidade, ou melhor, a identidade do seu eu, Saïd nos conta o seguinte:

Como muitos outros, pertenço a mais de um mundo. Sou um árabe palestino e também sou um norte-americano. Isso me proporciona uma estranha, para não dizer grotesca, perspectiva dupla. Além disso, sou, é claro, um acadêmico. Nenhuma dessas identidades é à prova d'água; cada uma influencia e exerce um papel sobre a outra. O que complica as coisas é que o Estados Unidos acabou de travar uma guerra destrutiva contra um país Árabe, o Iraqueque, por sua vez, ilegalmente ocupou e para todos os efeitos tentou eliminar o Kwait, outro país Árabe. O Estados Unidos também é o principal patrocinador de Israel, estado que, como um palestino, eu assimilo ao processo de destruição da sociedade e do mundo no qual nasci. Israel agora administra uma ocupação militar brutal nos territórios palestinos da Cisjordânia e de Gaza. Então, sou obrigado a negociar as diferentes tensões e contradições implícitas em minha própria biografia (Ibidem., p.12).

Negociar as tensões e contradições de nossas identidades não-puras e não-fixas é compreender os jogos de interdependência que nos circunscrevem, mas também é negociar a ambivalência dos afetos que atravessam e transbordam tais tensões e contradições: é negociar o amor e o ódio, a preservação e a destruição. E precisamos desenrolar negociações desse tipo, inclusive, enquanto acadêmicos.

2. O papel do intelectual
A negociação sobre a qual fala Saïd me faz recordar do primeiro ato do podcast “Ouvindo vozes”, publicado no Youtube em 17 de novembro de 2022 pela Rádio Novelo. Nesse primeiro ato, um pesquisador brasileiro, que teve acesso ao acervo de gravações do Superior Tribunal Federal da época da ditadura, afirma que o papel do pesquisador intelectual deve ser de neutralidade mediante as violências históricas, ou seja, que o intelectual que (como afirma o referido acadêmico) fez dois anos de mestrado e quatro anos de doutorado não tem por função denunciar as crueldades perpetradas no passado ou no presente. De acordo com esse pesquisador, o acadêmico da denúncia não é um intelectual, mas um altruísta. O renomado pesquisador brasileiro que falou tudo isso na Rádio Novelo parece se outorgar, portanto, o papel e a função da neutralidade e objetividade científica, como se ele fosse desprovido de identidade ou, ao menos, como se, enquanto intelectual, ele tivesse que ser desprovido de identidade; ou ainda, como se a identidade do intelectual fosse justamente essa que postula a neutralidade e a objetividade territorial, cultural, identitária, histórica, étnica e afetiva, é claro. Não citarei aqui o nome do referido acadêmico, para conhecê-lo basta acessar o episódio em questão no Youtube da Rádio Novelo e escutar os primeiros vinte minutos da difusão. Ora, o que me interessa nessa discussão é o seguinte: do mesmo modo que não há identidade pura, não há identidade neutra, não há identidade absolutamente objetiva e, tampouco, não-identidade. Isso significa, em certa medida, que as investigações acadêmicas, sobretudo aquelas de cunho ético e político, passam pela negociação das tensões e contradições identitárias que nos interconstituem nesse “mundo misturado”, como afirma Edward Saïd na obra Dans l'ombre de l'occident(SAÏD, 2017, p.64).
Dito de outro modo, as investigações acadêmicas não estão distanciadas desse mundo. Diferentemente, elas estão conectadas a ele e, muitas vezes, permitem-nos que nos reconectemos a ele, isto é, que nos conectemos de outra forma, dando ensejo a uma espécie de reparação histórica que se modula, sobretudo, como salvaguarda ético-política, a qual deve ser entendida, a partir de Butler, como a tentativa de nos proteger e de proteger o mundo de nossas tendências destrutivas, tentativa que vislumbra a garantia das condições de possibilidade não só do tempo presente, mas também do futuro. Parece-me, pois, que tanto para Butler quanto para Saïd, em contraposição ao acadêmico brasileiro convidado para aquele episódio da Rádio Novelo, o intelectual é aquele que denuncia a crueldade do passado e do presente na tentativa de salvaguardar o futuro. O intelectual é, portanto, aquele que ressentea crueldade e que ampara a reparação como salvaguarda nesse ressentimento de tipo histórico. O intelectual é aquele que constantemente negocia suas próprias tensões e contradições afetivo-identitárias, na medida em que ele também é requisitado a negociar as tensões e contradições desse mundo misturado que o abarca e ao qual ele pertence, afinal de contas “tudo sobre o que falamos é uma mistura, estamos em um mundo de sociedades interdependentes, variegadas. Essas sociedades são híbridas, impuras” (SAÏD, 2017, p.83). Ainda sobre o intelectual, Edward Saïd diz o seguinte:

[...] creio que o papel do intelectual é essencialmente o de elevar a consciência, de estar por dentro das tensões, das complexidades e de tomar para si mesmo a responsabilidade por toda uma comunidade. É um papel de não-especialista, trata de questões que são transversais às disciplinas profissionais. Pois sabemos o que acontece com o discurso profissional. Ele rapidamente se torna um jargão, o discurso está lá apenas para informar, os outros são colocados em um estado de consentimento e se trata sobretudo de promover sua própria posição até o fim. É algo que considero odioso, porque me parece que a sociedade é feita de dois tipos de pessoas. Há os conservadores, os que mantêm as coisas como são, e há os intelectuais que provocam a diferença e a mudança (Ibidem., p.71).

Não podemos deixar de sublinhar que Butler parece concordar com Saïd quanto ao trabalho do intelectual, que está longe de ser uma tarefa profissional ou profissionalizante de tipo neutra e objetiva. O possível entrelaçamento perspectivístico entre Saïd e Butler se torna evidente quando recorremos às leituras que a filósofa faz de Melanie Klein acerca da potência ético-política do ressentimento, o qual nada mais é do que uma negociação afetivo-identitária. Trata-se da negociação entre, por um lado, o amor que recebemos, mas perdemos, ou o amor que nunca tivemos; e, por outro lado, o ódio que sentimos por aquilo/aqueles que, porventura, destituíram-nos do amor que um dia tivemos ou por aquilo/aqueles que nunca nos deram amor. Butler recorre a Melanie Klein no intuito de assimilar as reflexões da filosofia moral às da psicologia moral. Basicamente, o objetivo é compreender a dimensão trágica do mundo do qual participamos, do mundo que fabricamos, mas também, tanto no que concerne ao nosso fazer acadêmico-intelectual quanto no que concerne às relações que entretemos com os outros de modo geral, de que maneira podemos negociar nossas tendências criativas e destrutivas.
Partindo do imaginário da equanimidade social instanciada pelo princípio que postula que as vidas têm e devem ter igual direito ao luto, isto é, que as vidas não podem ser reduzidas a números, estatísticas e tampouco ser compreendidas, tanto em níveis micro quanto macro políticos, como danos colaterais, Butler lança mão daquilo que chamo de “cosmopolítica do luto”. Mais precisamente, para combater a racionalidade de mercado, que “aceita a morte de muitos [...], o sacrifício de vidas como um preço razoável a se pagar, como uma norma razoável” (BUTLER, 2022, p. 96), Butler propõe a cosmopolítica do luto, a qual se ancora em uma “aspiração normativa” que descreve e prescreve a “formulação de um imaginário político de igualdade radical no direito ao luto” (Idem., 2020, p.74). Para Butler, as governamentalidades neoliberais se valem tanto da distribuição desigual de bens e de recursos, quanto da distribuição desigual do direito ao luto, de modo que frequentemente a distribuição desigual de bens e recursos ou, ainda, a não-distribuição de recursos (como acontece no caso de genocídios belicamente orquestrados) se justificam pela presunção ético-política da dispensabilidade de certas vidas. Sim, o cálculo mercadológico é cruel, profundamente cruel. Essa crueldade não se deve necessariamente ao ressentimento, mas talvez à falta de ressentimento, como nos explica Butler, a partir de Melanie Klein, na tentativa de compreender duas questões que estão co-implicadas e que, de acordo com Butler, só podem ser respondidas com o apoio da psicologia moral. As questões são as seguintes: a) O que nos leva a preservar e proteger vidas que poderíamos destruir? b) O que nos leva a destruir vidas que poderíamos preservar e proteger?
Não entrarei nos detalhes da leitura que Butler faz de “Love, Guilt, andReparation” (1975), de Melanie Klein, na obra The Force of Non-violence (2020). Nesse sentido, também não me comprometerei com o desenvolvimento das possíveis respostasbutlerianas às questões recém mencionadas. À guisa de conclusão, gostaria de fazer uma sucinta indicação acerca dasalvaguarda, tal como é trabalhada por Butler, nas trilhas de Klein e pensadaem relação à maneira pela qual Saïd, enquanto intelectual, articula-se à questão da Palestina. Para tanto,prestemos atenção em um trecho da entrevista concedida por Edward Saïd, em 20 de novembro de 2001, a Charlie Rose em seu talk-show homônimo, transmitido pelo canal norte-americano PBS. Na ocasião, Charlie Rose diz o seguinte a Saïd: “Israel tem razões para acreditar que há palestinos que não reconhecem o seu próprio desejo de existir e para acreditar que se Israel não tivesse poder e apoio do Estados Unidos, os palestinos os jogariam no mar” (SAÏD & ROSE, 2001, 8m13).Saïd responde o seguinte a Rose:

Eu apostaria minha última moeda no seguinte – o principal problema para os palestinos é profundamente emocional e político. Por favor, escute-me. Penso que para nós o maior problema com Israel não é o que Israel fez, mas o fato de que isso nunca foi reconhecido. Penso que o que precisamos (...). Penso que o que é necessário – (...) e que a paz nunca acontecerá sem isto – é que um líder de Israel tem que manifestar um gesto de compaixão e reconhecimento ao povo palestino. Tudo o que temos é uma sensação, bem... uma sensação de “nós não temos responsabilidade pelo que aconteceu. Tudo o que vocês fizeram é problema de vocês.” Enquanto o que penso ser absolutamente necessário é que os Israelenses – indivíduos o fazem, mas precisamos de um reconhecimento do governo de Israel da responsabilidade do que aconteceu com o povo palestino. Não há segredo nisso. Todo mundo sabe que a destruição da sociedade palestina foi o resultado da determinação do estado de Israel. É simples assim. Você precisa se livrar de uma sociedade no intuito de implantar outra (SAÏD & ROSE, 2001, 8m53; 10min).

Tendo a resposta de Saïd em mente, vejamos de que maneira Butler, nas vias abertas por Melanie Klein, concebe a salvaguarda.

3. A reparação como salvaguarda
De acordo com Butler, a salvaguarda só pode ser colocada em operação por meio do enfretamento da tragicidade do mundo, tragicidade que linguisticamente se manifesta na exclamação “'que tipo de mundo é esse no qual esse tipo de coisa pode acontecer!'” (BUTLER, 2022, p.24). A manifestação exclamativa da tragicidade do mundo é, ao mesmo tempo, um clamor ressentido. E se recorremos ao caso de Saïd, o enfrentamento da tragicidade do mundo no que se refere à violência sofrida pelos palestinos incita uma postura intelectual que alinha a acuidade epistemológica à intervenção ético-política da salvaguarda, de modo que, no bojo do ressentimento atinente ao amor do qual foi destituído no ímpeto das investidas imperialistas, o pesquisador se torna, ao mesmo tempo, militante e ativista. Essa dinâmica que vislumbramos em Saïd é muito comum entre feministas, animalistas, ecologistas, antirracistas e corresponde, de certo modo, a uma forma de se fazer filosofia, de se praticar arte e literatura, mas também de ensejar a ciência.
Para Butler, a reparação como salvaguarda se ancora na imagética contrarealista do amor e se atrela ao desejo por felicidade. A felicidade desejada no âmbito experencial da salvaguarda não é egoísta, tendo em vista que ela é alimentada pela imagem do amor recíproco. Trata-se, então, do desejo de fazer do mundo um lugar feliz e de interromper, dessa maneira, o eterno retorno da tragicidade cósmica. Mas, para isso, precisamos nos comprometer com a felicidade dos outros. Como explica Butler, “Klein sustenta que o desejo de fazer as pessoas felizes está associado a 'um forte senso de responsabilidade e preocupação' e que a 'solidariedade genuína [simpatia genuína] envolve nos colocarmos no lugar das outras pessoas'” (BUTLER, 2020, p.87). No entanto, não se trata de se colocar no lugar do outro de maneira a privilegiar somente nossas tendências criativas, amorosas; trata-se também de vislumbrar-se, por meio desse deslocamento imagético, no lugar do agressor para que, assim, possamos nos dar conta de nossas tendências destrutivas.
Se nos valemos das ferramentas conceituais butlerianas, que incorporam as ferramentas conceituais kleinianas, para analisar o clamor de Edward Saïd, clamor que clama pela compaixão e pelo reconhecimento do povo palestino por parte do governo de Israel, somos capazes de compreender que o comprometimento da salvaguarda para com a felicidade dos outros não envolve o sacrifício da reciprocidade amorosa (como se o agredido tivesse que amar incondicionalmente o agressor, sem esperar nada em troca). A reparação como salvaguarda não renuncia à reciprocidade do amor; diferentemente, ela o demanda. Então, para que a felicidade das pessoas possa ser instituída e, portanto, o dano que ainda está por vir evitado, uma tensão política não-violenta se instaura, pois o contra-ataque atrelado ao clamor ressentido que vislumbra a prática política da salvaguarda se manifesta na força não-violenta da reivindicação por compaixão e reconhecimento. Uma reivindicação desse tipo só é possível no âmbito da prática da solidariedade genuína ou da simpatia genuína, que rompe com a fantasmagoria paranoica do inimigo por meio da desidentificação em relação à agressão outrora sofrida, seja pelo golpe de um governo tirânico de ímpeto colonizador e etnocida ou pela bomba que atinge a rua, a escola, o trabalho, a universidade, o hospital, a prisão, os campos, os campos de refugiados. Aquele que salvaguarda é incapaz de desejar a agressão, tudo o que ele deseja é a felicidade do mundo e para o mundo, mas para que esse desejo se torne realidade, aquele que salvaguarda também precisa reivindicar a reciprocidade na compaixão ou na solidariedade, bem como o reconhecimento da indispensabilidade de sua própria vida e da vida de todos os outros no mundo. Reivindicações desse tipo, que também são pautas acadêmico-intelectuais, não estão isentas de afeto, ou seja, de amor e de ódio. Reivindicações desse tipo despontam do ressentimento que, elaborado sob a luz da criticidade intelectual, reverte-se na reparação como salvaguarda.

Referências bibliográficas

BUTLER, Judith. The force of non-violence. New York: Verso Books, 2020.
______. What world is this? A Pandemic Phenomenology. New York: Columbia University Press, 2022.
KLEIN, Melanie. “Love, Guilt, and Reparation”. In: ______.Love, Guilt and Reparation and other works 1921-1945. New York: The Free Press, 1975, p. 306-343.
OUVINDO VOZES. Produção: Rádio Novelo. Brasil, 2022. 54min22. Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=V9zNR7Q1_gw&t=1110s.
SAÏD, Edward. Identity, Authority and Freedom: The Potentate and the Traveler,Boundary 2, vol. 21, n.3, 1994, p.1-18.
______. Dans l'ombre de l'Occident. Paris: Payot, 2017.
SAÏD, Edward; ROSE, Charlie. Edward Said examines the deep conflict in the Middle East, democracy, and the Arab world. In: Charlie Rose Talk-show, 20.11.2001, PBS. Disponível em: https://charlierose.com/videos/4916.