A crítica de Nietzsche à visão moderna da história
Ícaro Souza Farias
Doutorando, Filosofia, UFRJ
Mestre, Filosofia, UFF
A segunda extemporânea
Nietzsche escreveu sua segunda extemporânea, Sobre a utilidade e a desvantagem da história para vida, durante o inverno de 1973-1974. O livro em questão fez parte de um projeto que se consolidou em quatro extemporâneas. Para levar a cabo essa breve investigação sobre a segunda extemporânea é necessário aclarar o contexto histórico no qual a obra surgiu. Em outras palavras, é necessário entender as razões que motivaram Nietzsche a escrever o livro em questão. O próprio título já oferece sinais valiosos do intento nietzschiano, ou seja, pensar, refletir sobre a utilidade e a desvantagem da história para vida. A história, portanto, está sendo considerada enquanto objeto de reflexão tendo a vida como objetivo último. Nietzsche já esboça no título da obra que a história pode tanto ter aspectos vantajosos ou não do ponto de vista da vida.
O contexto intelectual e acadêmico do qual Nietzsche faz parte é, em grande parte, caudatário do hegelianismo e do positivismo e de sua concepção histórica na qual a memória como recurso que dá sentidoao passado é hipervalorizado. A filosofia hegeliana bem como a positivista compreende que a história possui um sentido teleológico, isto é, caminha para um fim e considera que tal fim é o desfecho de um processo evolutivo da razão humana. Nietzsche, contudo, não corrobora essa visão, pois para ele a história não caminha para uma finalidade.
Ao mesmo tempo Nietzsche está ciente que não é possível prescindir da história, afinal somos seres históricos, forjados enquanto seres humanos no interior dos processos históricos. Assim sendo, é preciso refletir sobre o papel da história e sua serventia ou não para a vida, a vida como experiência existencial. Já no Prefácio da obra Nietzsche esclarece quanto ao valor da história a partir da vida.
“Aliás, odeio aquilo que apenas me instrui, sem aumentar ou estimular diretamente minha ação”. Com essas palavras de Goethe, que expressam um ceterumcenseo, pode ter início nossa consideração sobre o valor e o desvalor da história. Nela se mostra por que o ensinamento sem vivência, por que o saber que entorpece a ação, por que a história como fútil excesso de conhecimento e luxo devem, nas palavras de Goethe, ser odiados – porque ainda nos falta o mais necessário, e porque o supérfluo é inimigo do necessário. É certo que precisamos da história, mas de maneira diferente do que dela precisa o ocioso mimado no jardim do saber, que pode nobremente olhar com desdém para nossas toscas necessidades e nossas rudes carências. Isto é, precisamos da história para a vida e para a ação, ou ainda para a edulcoração da vida egoísta ou do ato covarde e vil. É apenas na medida em que a história serve à vida que queremos a ela servir; mas existe um grau, no exercício e na valorização da história, em que a vida fenece e se degenera: um fenômeno que experimentamos agora, tão necessário quanto doloroso possa ser, como um estranho sintoma de nossa época(NIETZSCHE, 2017, p. 30).
A época a qual Nietzsche se refere é a modernidade, que segundo ele padece de uma exacerbação histórica, de um certo sentido histórico hipertrofiado. Em face deste cenário, Nietzsche evoca a pretensão de sua empreitada, qual seja, “o de intervir extemporaneamente, isto é, contra a época e a favor de uma época futura” (NIETZSCHE, 2017, p. 30). A crítica que Nietzsche direciona contra uma determinada concepção de história, que, segundo seu diagnóstico, é nociva à vida, tem como objetivo compreender o papel da história em sua relação com a vida.
Os animais, diz Nietzsche, vivem de modo aistórico, eles são absolutamente absorvidos pelo instante, pelo presente; suas insatisfações parecem se dissipar no aqui e agora. O homem, contudo, trava continuamente contendas contra o passado, que amiúde, de modo inesperado o arranca de uma paz momentânea e o arrasta para algures de um tempo que se passou. No entanto, o homem carece e sempre carecerá de se livrar do passado, por sucessivos momentos de esquecimento, caso contrário jamais conseguirá paz, tranquilidade, e até mesmo beatitude. “Um homem que sentisse tudo unicamente de forma histórica seria parecido com alguém que tivesse abdicado do sono, ou com o animal que devesse viver apenas em repetida ruminação”(NIETZSCHE, 2017, p. 36). Em outras palavras, seria impossível viver sem a capacidade de esquecer. Aclarando a argumentação, pode-se dizer que um determinado sentido de história provoca danos perniciosos para os homens, para grupos, culturas. O histórico em demasia inviabiliza a existência. O aistórico é imprescindível para o desenvolvimento humano.
A história, na medida em que está a serviço da vida, está a serviço de uma força aistórica e por isso, por essa submissão, nunca pode nem deve se tornar uma ciência pura, como a matemática. Contudo, a questão de que até que grau a vida precisa da história é uma das maiores questões e preocupações no que diz respeito à saúde de um homem, de um povo, de uma cultura. Pois o excesso de história destrói e degenera a vida, degenerando, por fim, a própria história. (NIETZSCHE, 2017, p.45).
Convêm escrutinar as três modalidades de história apresentadas por Nietzsche em sua segunda extemporânea, ou seja, a história monumental, a antiquária e a crítica, considerando seus aspectos negativos e positivos. Sobre a monumental, Nietzsche esclarece:
O pensamento fundamental da crença na humanidade expresso pela exigência de uma história monumental é o de que os grandes momentos na luta dos indivíduos formam uma corrente que os une, no decorrer dos séculos, na cordilheira da humanidade; que, para mim, o mais elevado de cada momento há muito ocorrido ainda é vivo, claro e grandioso(NIETZSCHE, 2017, p. 48).
Qual aspecto positivo poderia ser extraído do monumental? O homem que olha para o passado grandioso vê que se um dia foi possível realizar algo extraordinário, entende que tal passado pode ser replicado. A história monumental estimula, incentiva os homens a reproduzir grandes feitos do passado, precisamente pelo exemplo daqueles que os fizeram. Todavia, o monumental pode ser também prejudicial quando apropriado por iníquos, facínoras, narcisistas, que na ânsia de repetir grandes realizações passadas lançam mão de todo tipo de expediente cruel, egoísta, bárbaro para alcançar seus objetivos.
Em segundo lugar, há a história antiquária. Como o próprio nome sugere, a antiquária preserva o passado, conserva o legado do que foi construído por homens do passado. Aquele que tem predileção pela história antiquária olhará para a história, para a parcela do passado que lhe interessa com reverência. Nesse caso, seu intuito é preservar, as tradições, costumes, valores, crenças. Segundo Nietzsche, onde reside o maior valor do antiquário? Justamente, “onde ele estende um simples e pungente sentimento de prazer e satisfação sobre aquelas condições modestas, rudes, até miseráveis em que um homem ou um povo vive; [...]” (NIETZSCHE, 2017, p. 48).
Em resumo, a história antiquária pode servir para unir o povo, conservando o seu passado, olhando para ele com admirável reverência. Porém, o culto a essa modalidade de história incorre em alguns riscos. O apegoao passado afirma, aplaude o já feito, o já vivido, mas se fecha às atualizações do presente. Nesse sentido, os seguidores do antiquário olham com desdém para o presente e nada podem produzir de novo, pois olham apenas para a vida pregressa de sua gente. Outro perigo também precisa ser considerado: o amor cego ao passado pode levar ao culto indiscriminado de todos os fatos do passado de um povo, e mesmo das pessoas, de modo acrítico, irrefletido.
Aqui, um perigo está sempre próximo: de, ao fim, tornar-se tudo o que for antigo e pretérito, tudo que se encontra em seu campo de visão, como igualmente digno de honra; enquanto o que é novo e em transformação, o que não se dirige ao antigo com veneração, é venerado e hostilizado (NIETZSCHE, 2017, p. 48).
Por fim, há a história crítica, que ocorre quando o homem olha para o passado, investigando-o, colocando-o em perspectiva escrutinadora, avaliando, assim, seus erros, suas falhas e suas ilusões. O homem, claro, precisa deste olhar sobre a herança histórica que recebeu, pois não é razoável, tampouco legítimo, assentir tudo que vem do passado. É necessário, portanto, pensar criticamente. Entretanto, o perigo do crítico consiste em acreditar que a crítica que se dirige ao passado torna quem critica imune as suas influências. Para Nietzsche, tal propósito é impossível, já que por mais que se tente não há possibilidade de se esquivar completamente da nossa herança atávica.
São essas as modalidades históricas apresentadas por Nietzsche, as quais os povos, partindo de diferentes interesses e perspectivas podem e precisam conhecer, sendo por vezes o monumental, o antiquário e o crítico.
A crítica à visão histórica moderna
Uma vez esclarecido as modalidades históricas, voltemos para a questão central do texto: a crítica de Nietzsche contra a modernidade. A tendência é que os homens modernos considerando suas conquistas, inclusive do ponto de vista dos direitos (igualdade, liberdade e etc.), olhem para as épocas que os precederam e as considerem atrasadas (aliás, como costuma fazer todo povo de uma época). Esta é a lógica do progresso histórico, a qual Nietzsche ataca frontalmente. Poderíamos nos imaginar, questiona nosso filósofo, no Renascimento? “O certo é que não podemos nos colocar, ou sequer nos pensar, nas condições do Renascimento: nossos nervos não aquentariam aquela realidade, muito menos nossos músculos” (NIETZSCHE, 2010,p. 87). O fato dos modernos não se adaptarem ao contexto do Renascimento não significa para eles um progresso, não resulta em um ponto de ascensão na escala da evolução humana.
A pretensão do homem moderno decorre de seu conhecimento hipertrofiado sobre as épocas, ou seja, o moderno dispõe de demasiado conhecimento e informação sobre os mais diversos assuntos, “pois nós, modernos, nada somos; somente quando nos preenchemos e nos abarrotamos das épocas, costumes, artes, filosofias, religiões e conhecimentos de outrem é que nos preenchemos e nos tornamos algo digno de atenção” (NIETZSCHE, 2017, p. 68).O excesso de história que uma época pode adquirir parece, aos olhos de Nietzsche, perigoso porque
Por conta desse excesso, uma época imagina possuir a mais rara virtude, a justiça em maior grau do que outras épocas; por meio desse excesso, o instinto de um povo é destruído, impedindo o amadurecimento tanto do indivíduo quanto da totalidade; através desse excesso, planta-se, a qualquer momento, a crença nociva na velhice da humanidade, a crença de ser tardio e epígono; graças a esse excesso, uma época adquire uma perigosa disposição à ironia sobre si mesma e, com ela, uma disposição ainda mais perigosa ao cinismo; mas, neste caso, nela amadurece uma práxis egoísta e astuta, que debilita as forças vitais e por fim as destrói(NIETZSCHE, 2017, p. 75).
O homem moderno possui uma personalidade depauperada. Cabe esquadrinhar as razões do diagnóstico nietzschiano acerca da era moderna como período histórico pródigo em valores decadentes. Por que a modernidade é avessa à ascensão, a afirmação da vitalidade? Por que o mundo moderno subscreve a fraqueza da vontade?
O homem moderno desenvolveu uma relação muito intelectualizada com a história, isto é, ele olha para história como se observasse um quadro, analisando suas nuances, suas características estéticas, sendo capaz de descrever com riqueza de detalhes o contexto no qual a obra foi pintada, bem como as influências sofridas pelo pintor. Mas todo esse processor analítico seria observacional, sem conexão com a vida.
Em função disso, o homem moderno está agrilhoado em um dilema, que para Nietzsche é inédito na história, a saber, a contradição que há entre interior e exterior. O moderno carrega em si um grandioso conhecimento. Contudo, todo conhecimento acumulado dentro de si, que muitas vezes sequer sabe para que serve, não tem aplicabilidade externa e, por isso, “permanece oculto em um certo mundo interior caótico, que aquele homem moderno com raro orgulho, denomina como sua própria ‘interioridade’”(NIETZSCHE, 2017, p. 67). A cultura moderna, desta feita, padeceria de inautenticidade, está longe de ser uma cultura singular, autêntica.
O conhecimento pretensamente científico da historia desenvolvido pelos modernos castrou a “força plástica da vida”, aquela força que sabe se servir do passado em benefício da própria vida.
Deve a vida imperar sobre o conhecimento, sobre a ciência, deve o conhecimento imperar sobre a vida? Qual das forças é a superior e decisiva? Ninguém duvidará: a vida é superior, a força imperante, pois um conhecimento que destruísse a vida seria destruído por si mesmo(NIETZSCHE, 2017, p. 75).
Não há conhecimento sem vida, tendo ela, portanto, um valor superior em relação ao conhecimento. Nietzsche apresenta dois antídotos contra a predominância do histórico, oaistórico e o supra-histórico. “Com a palavra “aistórico” designo a arte e a força de poder esquecer e se fechar em um horizonte delimitado; chamo de “supra-histórico” o poder de desviar a visão do devir em direção daquilo que dá à existência o caráter da eternidade e identidade, a arte e a religião” (NIETZSCHE, 2017, p. 142). A ciência moderna veria com desconfiança o aistórico e o supra-histórico, pois considera legítimo apenas o que é objetivo. A ciência tem sede de verdade, quer de modo contumaz capturar objetivamente a essência do real.Mas o esquecimento do aistórico e a força plástica fornecida pela arte e pela religião seriam capazes de colocar não mais a verdade em primeiro plano, mas a vida mesma em sua vitalidade criadora.
Referências
NIETZSCHE. Da utilidade e do inconveniente da história para a vida. São Paulo: Hedra, 2017.
______. Crepúsculo dos ídolos ou como filosofar a golpes de martelo. São Paulo: Companhia das letras, 2010.