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Há espaço para o sagrado no horizonte conceitual e experiencial  do homem contemporâneo? 

 Rogéria Guimarães Alves Bernardes

Doutora em Psicologia - UFF     

Introdução

Há um consenso generalizado de que o período histórico conhecido como “Idade Moderna” tenha provocado radicais transformações nas relações humanas e nos contextos sociais, afetando, de maneira especial, o modo como a humanidade passou a se relacionar com a natureza, com o binômio saúde/doença, com o poder abstrato do Estado, com as noções de trabalho, de produtividade e de acumulação de bens, com as experiências de tempo e – dentre tantas outras transformações – com a construção identitária do sujeito. É fato corrente, no entanto, que, nenhum cenário parece ter sido tão drasticamente afetado quanto aquele que se relaciona com o âmbito do sagrado e do religioso. 

Em se tratando do Ocidente, podemos afirmar que a visão de mundo norteadora e integradora da compreensão dos fenômenos até a Idade Moderna, tenha se constituído fundamentalmente pela religião, especialmente pelo cristianismo, considerando-se, inclusive, a era cristã como um marco referencial histórico. Ancorados neste viés histórico do Ocidente, os séculos XIV e XV são reconhecidos e destacados por sua enorme importância em relação aos fenômenos sociais, culturais, econômicos e religiosos, pois, a partir de então, o deslocamento axial da concepção de mundo – até então teocêntrica – abre espaço para uma visão antropocêntrica, que emancipa o ser humano em face aos seus deuses e inaugura a era da racionalidade como medida de todas as coisas. 

Vulgarmente conhecida como a “era da razão”, a modernidade desloca, pois, o sagrado e o religioso da primazia de instâncias produtoras de sentido no mundo ocidental. A compreensão de mundo passa a não repousar mais sobre o mito, mas sobre o discurso racional. Calcado no conhecimento técnico-científico e na ideia de um progresso ilimitado e irreversível, o homem moderno – emancipado dos mitos e dos deuses que o impediam de encontrar sua plena autonomia – ancora-se, portanto, cada vez mais, numa racionalidade funcional e instrumental, que, na busca por respostas, fragmenta, esquematiza e analisa a realidade, encontrando, nessa racionalidade e na eficiência das explicações empíricas, muitas das respostas para seus questionamentos existenciais. 

É neste sentido que podemos considerar o fenômeno da secularização, a partir do qual, as respostas para as questões que acompanham a humanidade passam a ser encontradas no mundo – no saeculum – e não mais no sagrado e no transcendente. Progressivamente, tal fenômeno subtrai à influência da religião todos os domínios da vida humana – não só as funções política, econômica e científica – mas também aquilo que tange ao humano, enquanto sua identidade pessoal, existencial e seu lugar no mundo. Pelos séculos seguintes, seguimos observando o fenômeno da contínua racionalização da vida, dos avanços da ciência e do progresso da tecnologia criando, estruturando e definindo, indubitavelmente, o futuro da humanidade. 

Herdeira natural da filosofia – com seus questionamentos sobre a condição humana –, mas emancipada como um saber independente, a partir do século XIX, a psicologia tem hoje a difícil tarefa de situar o lugar do sagrado no horizonte conceitual e experiencial do humano. A época atual – modernidade tardia, hipermodernidade, ou pós-modernidade – carrega em si os resultados de toda essa complexidade advinda das inúmeras transformações ocorridas nos últimos quatro séculos. Também conhecida como “modernidade em crise”, assiste às próprias transformações: à fragmentação das grandes narrativas, utopias e tradições, ao esvaziamento da ideia de um progresso ilimitado e ao desencanto da racionalidade como medida de todas as coisas, obrigando a humanidade a repensar e a reestruturar os conceitos e sistemas de valores, que antes lhe davam sustentação existencial. 

Este texto pretende, pois, sob o olhar da psicologia, refletir sobre a noção de sagrado no contemporâneo. Pela abrangência do tema, decidimos delimitar tal noção: interessa-nos refletir sobre a sacralidade presente no curso da vida. O sagrado a que nos referimos relaciona-se, pois, com a experiência; não, necessariamente, com conceitos, com dogmas, com ritos ou com celebrações. Afinal, ainda há espaço para o sagrado no contemporâneo? Se sim, quando, onde o como ele pode ser experienciado? Pensamos reconhecer, nesses questionamentos, algo que acompanha a humanidade através dos tempos; algo tão antigo, que ultrapassa as fronteiras das diferentes culturas. Neste sentido, buscaremos dialogar, ao longo deste texto, com o pensamento de autores que, no contexto hodierno, muito têm contribuído para as discussões sobre o sagado, revisitando e enriquecendo tais discussões com diferentes olhares.  

 

Algumas contribuições teóricas

Escolhemos, pois, construir nosso conjunto de ideias, partindo das ideias de Rudolf Otto (1869/1937) e de sua obra, O Sagrado: os aspectos irracionais na noção do divino e sua relação com o racional. Seguramente, ao publicar sua mais famosa obra, Otto buscava obter respostas para algumas dessas perguntas e inquietações, que nós também fazemos. Publicada pela primeira vez em 1917, é certo que parte da importância atribuída a essa obra – que alcançou rapidamente repercussão mundial, e que, mais de cem anos depois, continua influenciando o pensamento de muitos autores – advenha do contexto histórico e político em que fora concebida. 

O ano era 1917; a Europa amargava o final da Primeira Guerra mundial e o império alemão desmoronava-se com suas colônias. Nas artes, nas músicas, nas letras, o movimento expressionista manifestava-se através do pensamento daqueles que não se deixavam sugestionar com o crescimento econômico e com o esplendor do incipiente século XX.  Questionava-se a frieza da razão, desconfiava-se da idolatria das máquinas e do dinheiro, do desenvolvimento tecnológico e da ciência, entendidos, não como avanço, mas sinal da ruína do espírito. É neste contexto do Aufbruch – período de transição, de ruptura e de recomeço –, que podemos identificar o que se conhece como “teologia da crise”.  Brandt (2007, p. 10) descreve esse contexto de “limiar entre épocas” como um momento de “categórica rejeição da teologia anterior à Primeira Guerra Mundial, abalo do conceito de ciência, assim como de religião vigente até ali, ênfase no irracional [...], no paradoxal, no intuitivo, no kairos, além da polêmica contra o historicismo, psicologismo e todo e qualquer idealismo”.  

Não obstante a contribuição desse contexto histórico, atribuímos o sucesso de O Sagrado à escolha da perspectiva adotada pelo seu autor. Ao invés de focar nas ideias e nas teorias acerca de Deus e da religião, Rudolf Otto, ratificando Santo Agostinho, preocupa-se em abordar a noção de sacralidade, especificamente, a partir da análise da experiência religiosa. Para Otto – em consonância com as ideias do Aufbruch –, o sagrado não se deixa apreender por conceitos, pois o que é nomeado não deixa de ser um reducionismo conceitual. “A religião é, para o autor, inderivável, tendo o seu início em si mesmo, razão pela qual, o Sagrado é categoria rigidamente a priori” (BRANDT, 2007, 14). Indo na contramão do momento histórico e do predomínio da razão como fonte privilegiada de conhecimento, o autor preocupa-se, preferencialmente, em ressaltar os elementos irracionais da experiência religiosa, em detrimento das definições e das derivações conceituais sobre a mesma. 

Num primeiro momento, Otto esforça-se, pois, por clarificar o caráter particular dessa experiência com o sagrado – cunhada por ele como experiência do numinoso (do latim numem; “Deus”, “força divina”). Por seu caráter irracional, o numinoso não pode ser explicitado por conceitos, mas, tão somente, através de expressões simbólicas e das descrições dos sentimentos e reações produzidas no humano. O autor categoriza o caráter específico dessas experiências numinosas, descrevendo e analisando como as pessoas reagem a elas e diante delas. Para Otto (2007, p.151), o sentimento do numinoso eclode da mais profunda base da psique, a partir dos estímulos, das condições e das experiências sensoriais do mundo. “Só que não emana delas, mas através delas”. Para descrever tal sentimento, ele cunha suas famosas expressões – mysteriumou tremendum, mysterium fascinans e majestas – que, desde então, aparecem comumente associadas aos aspectos característicos das experiências de natureza sagrada. 

Citando Tersteegen, quando destaca que “um deus compreendido, não é Deus”, Otto (2007, p. 56) afirma que reside, justamente aí, neste aspecto inalcançável da divindade, o caráter de mysterium – o “totalmente outro” – e de majestas – majestade, supremacia absoluta. Esse sagrado que se revela como um mistério, apresenta-se também como tremendum – do latim tremor, medo ou temor (furcht) –, mas também, como fascinans, capaz de seduzir e de encantar. Surge, assim, o caráter dual do numinoso: o mysterium tremendum e fascinans, capaz de “apavorar, mas, ao mesmo tempo, de fascinar, de seduzir e de atrair”. Assim, com todos esses atributos – mysterium tremendum, fascinans e com sua majestas – a experiência com o sagrado carrega em si o encontro com uma alteridade radical, capaz de provocar, em quem a vivencia, sentimentos de fascínio, de encantamento, temor e reverência.

Pensamos como Otto, que é difícil mencionar o sagrado – a divindade ou a transcendência – sem que nos debrucemos sobre o conceito de experiência. A palavra “experiência” vem do grego empeiría e do latim experientia e, em linhas gerais, significa o conhecimento que se obtém a partir de uma prática; envolve tentar, comprovar. Em seu artigo, Experiência religiosa: busca de uma definição, Amatuzzi ratifica tais ideias, afirmando que o termo experiência designa, normalmente, um conhecimento obtido “na lida concreta com objetos particulares, e não nos livros ou no mero exercício dedutivo da razão raciocinante” (AMATUZZI, 1998, p. 53). O ato de experimentar implica, pois, em aprender com o novo, com o diferente, possibilitando, ao ser humano, apreensão, reflexão e compreensão dos fenômenos e a consequente construção de sentidos para a sua existência no mundo.

No texto, Limites e alcance da leitura freudiana da religião, Gontijo assinala o caráter pluriversal, simbólico, cultural e histórico, inerente às experiências com o sagrado, reforçando a noção de uma estreita ligação entre sacralidade e sentido. Como objeto privilegiado de vários saberes particulares – da antropologia, das ciências das religiões, da psicologia da religião, dentre outros –, a experiência religiosa desdobra-se continuamente em uma multiplicidade de vivências e de fenômenos, histórica e espacialmente condicionados pelas linguagens dos diversos tempos e lugares, expressando-se, pois, preferencialmente pela linguagem mitogenética – onde o mito nasce, necessariamente, como discurso sobre o sagrado. Isto é, ela se configura como uma “experiência que resulta primordialmente da capacidade simbólico-imaginária do homem e que se estende – como ensinava Rudolf Otto – entre o fascínio e o temor, ante o incompreensível e o misterioso” (GONTIJO, 1999, p, 152).

Maria Clara Bingemer, no texto, Mística e filosofia: a propósito de Simone Weil, corrobora essa complexa relação existente entre experiência, sagrado e sentido. Para a autora, a experiência é um fato primitivo, originário. É aquilo que se percebe de modo imediato e que se vive antes de toda análise e de toda formulação conceitual. Neste sentido, a autora destaca ainda a distinção entre empiria e meta-empiria, proposta por Jankélévitch e M. Dufrenne. Em tal distinção, empiria traduziria as experiências inseridas no curso cotidiano da vida; já o conceito de meta-empiria definiria as experiências capazes de romper furtivamente o cotidiano e nele irromper – momentos de fruição, de gozo, de epifania – traduzidas como instantes “da graça”, “de inspiração”. Nesta categoria, encontraríamos as experiências de natureza religiosa, amorosa, mística, poética, estética ou de êxtase – momentos em que predominam os aspectos sensitivos, sensoriais e emocionais, em detrimento dos aspectos cognitivo-racionais. 

A par do que descrevemos até aqui, pensamos que ninguém discorreu tão bem sobre essa noção de sacralidade como Mircea Eliade (1907/1986), em seu livro, O sagrado e o profano: a essência das religiões. Visitando alguns conceitos do sagrado em Otto, Eliade ressalta que “o homem toma conhecimento do sagrado porque este se manifesta, se mostra como algo absolutamente diferente do profano” (ELIADE, 2010, p. 17). Numa tentativa de expressar esse ato da manifestação do sagrado, o autor propõe o termo hierofania – que exprime apenas o que está implicado no seu conteúdo etimológico, a saber, que “algo de sagrado se nos revela”. Para Eliade, qualquer que seja essa manifestação, encontramo-nos sempre diante do mesmo ato misterioso: ao manifestar o sagrado, os objetos transformam-se em outras coisas, apesar de permanecerem eles mesmos. A pedra sagrada, o som sagrado e a árvore sagrada não são adorados como pedra, som ou árvore, mas justamente porque se transformaram em hierofanias, porque “revelam” algo que já não é nem pedra, nem som, nem árvore, mas aquilo que se manifesta através deles: o sagrado, o ganz Andere.

Da interação com o numinoso, surgem, portanto, os conceitos de “sagrado” e de “profano” – trabalhados por Eliade, ao longo de toda a sua obra – que identificam, segundo ele, duas modalidades diferentes de experiência no mundo. Podemos medir a distância que separa estas duas possibilidades de ser-no-mundo, pela simples observação de como o homem constrói as suas relações com o espaço, com o tempo, com a natureza, com a sexualidade, com o trabalho, enfim, pela observação de como ele constrói, com a realidade que o cerca, a sua rede de relações e de sentidos. Observamos, nas colocações de Eliade, a ênfase no fenômeno da sacralização do mundo, efetivando-se a partir de quaisquer objetos ou situações. Compreendemos que, em tais fenômenos, é o modo de experiência de mundo – sagrado ou profano – que determinará, na verdade, a presença ou não de uma hierofania. 

Para o autor, “o sagrado está saturado de ser. Potência sagrada quer dizer ao mesmo tempo realidade, perenidade e eficácia” (ELIADE, 2010, p. 18). Por tal motivo, nas sociedades pré-modernas, os homens tinham a tendência de buscar a maior proximidade possível com o sagrado e com seus objetos, pois tal proximidade equivalia ao poder e, em última análise, à realidade por excelência. Para o autor, reside aí a grande distinção das sociedades modernas: quaisquer que fossem as diferenças culturais e históricas entre tribos e grupos sociais pré-modernos, o homo religiosus vivia num Cosmos sacralizado, cuja sacralidade manifestava-se em todas as situações de seu cotidiano.  Com o advento da modernidade, o ser humano inaugura, pois, uma mudança radical no modo como passa a se relacionar com o sagrado, com a realidade à sua volta e, em consequência, consigo mesmo. 

Como foi visto, até aqui, inúmeras transformações sociais e culturais foram determinantes para que, ao longo dos tempos, novas relações fossem sendo construídas com a dimensão sagrada. Destaca-se que a presença constante das práticas religiosas, na história da humanidade, sempre pareceu traduzir o modo como o ser humano – reconhecendo-se finito – acolhia e buscava relacionar-se com aquilo que o transcendia. A relação com o sagrado – o transcendente – parece remeter-nos, pois, invariavelmente, à angústia da finitude e às questões do sentido último. A este respeito, citamos Giovanetti, quando afirma; “a interrogação que o homem faz, do mais profundo do seu ser, sobre as questões últimas do mundo e da realidade coloca-o ante o que denominamos ‘Sagrado’” (GIOVANETTI, 2004, p. 16). 

 Voltemos, portanto, à psicologia. Corroborando Ribeiro (2015, p.14), compreendemos a psicologia – etimologicamente, estudo da alma – como “a ciência que estuda o fenômeno humano na dimensão de sua totalidade, na sua plena e dinâmica relação pessoa-mundo. A ela interessa, por natureza, o pensar, o sentir, o fazer e a linguagem humana”. Como estudo do humano, em suas mais diversas manifestações no mundo – sejam de ordem biológica, emocional, social, espiritual, enfim –, seu objeto de estudo ultrapassa em muito o aspecto comportamental, supostamente previsível e mensurável. Assim, agregando à percepção dos fenômenos humanos um olhar sócio-histórico, a psicologia atual – num viés existencial-humanista – busca ampliar as reflexões sobre esse humano, a partir da ideia da subjetividade, ou melhor ainda, a partir da noção de “processos de subjetivação” – que enfatizam o caráter inacabado e em permanente devir do humano –, onde a noção de sujeito “emerge como o efeito ou produto, seja de uma prática discursiva, de processos identificatórios ou das próprias experiências culturalmente circunscritas” (LUSTOZA; SALZTRAGER, 2013, p. 43).  

É partindo, pois, deste lugar da psicologia – que não naturaliza o humano como algo dado anteriormente à existência no mundo – que organizamos o conjunto de ideias que constrói este texto. Corroborando as palavras de Bingemer (2013, p.16), quando afirma que “a uma nova concepção de ser humano necessariamente corresponde uma igualmente nova concepção de Deus”, ressaltamos a importância das experiências com o sagrado, na incessante criação e recriação de sentidos. Acreditamos que se torna urgente, portanto, resgatar o olhar da psicologia para os fenômenos abarcados pela complexa relação estabelecida, desde sempre, com a dimensão do sagrado. 

 

Considerações finais

Dialogando, pois, com autores que contribuíram tão ricamente para a construção deste texto, pensamos ser correto destacar a estreita e complexa vinculação, que parece existir entre sacralidade, experiência e sentido. No entanto, algumas perguntas permanecem: afinal, ainda há espaço para o sagrado no contemporâneo? Se sim, quando, onde o como ele pode ser experienciado?

Considerado o século sem Deus – onde até as divindades tornaram-se efêmeras e fugazes, identificando-se com objetos de consumo – o século XX encarnou o ápice do conceito de pós-modernidade, no que tange ao esvaziamento das grandes tradições religiosas. No entanto, é exatamente no atual cenário de século XXI, que podemos encontrar o que pode ser considerado como paradoxal: o ressurgimento da dimensão religiosa na sociedade atual.  Esse ressurgimento revela que o recuo do sagrado tradicional não implica em seu desaparecimento. Pelo contrário, o que observamos é somente o deslocamento de suas manifestações para outros contextos, assumindo formas novas e tão diversas quanto grupos católicos carismáticos, evangélicos neopentecostais, grupos de religiosidade oriental, espiritualistas, grupos religiosos de matrizes africanas, seguidores do Santo Daime, dentre outras. Esta diversidade de formas reflete o caráter múltiplo e fragmentado do sujeito contemporâneo, que, desligado de sistemas religiosos universais, passa a buscar, individualmente, ou em pequenos grupos, algo que sustente suas crenças e ajude na reconstrução de sentidos ante o esvaziamento da existência – possuindo, muitas vezes, várias bases que podem ser trocadas e substituídas de acordo com as suas necessidades. 

O ser humano relaciona-se com o mundo a partir de um horizonte de sentidos no qual habita. Assim sendo, tendo em vista o caráter simbólico, cultural e histórico, inerente às experiências religiosas, vislumbramos a ideia de um sujeito que se reinventa e se reconfigura, continuamente, em relação ao sagrado e, neste sentido, paradoxalmente, novas possibilidades de experiências religiosas vêm sendo construídas e reveladas nos contextos “dessacralizados” da contemporaneidade. Parece-nos correto afirmar, pois, que uma verdadeira experiência significativa com o sagrado não precisa acontecer, necessariamente, a partir de regras, de conceitos e de dogmas de alguma tradição religiosa, mas acontece, sim, a partir das atribuições de sentidos às experiências ocorridas nas relações decorrentes da existência no mundo. 

Experiência religiosa, encontro, epifania, hierofania; é interessante observar como todos estes conceitos parecem convergir, quando tentamos descrever os fenômenos que envolvem as experiências com o sagrado; conceitos convergentes na definição daquilo que cria abertura e inaugura uma nova ordem de sentidos com os fatos do cotidiano. Percebemos que, por se tratar de algo que surge da interrogação mais profunda da existência, o desejo pelo sagrado está presente, originariamente, em todos os seres humanos, ainda quando vivido como um encontro pessoal, a partir de acontecimentos ordinários do dia a dia.  Como fonte inesgotável de sentidos e de significados para quem as vivencia, as experiencias religiosas têm, pois, a capacidade de provocar sensações e emoções, despertando novos sentimentos, comportamentos e diferentes ações no mundo. Acreditamos, portanto, que a psicologia não pode mais ignorar e desconhecer a importância dessas experiências com o sagrado, que, com sua função constitutiva e integrativa da psique, produz e ressignifica, continuamente, sentidos existenciais. 

 

Referências

 

AMATUZZI, M. M. Experiência religiosa: busca de uma definição in Estudos de Psicologia, v. 15, n.º 1, 49-65, 1998. 

 

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LUSTOZA, R. Z.; SALZTRAGER, R. A subjetividade naturalizada e os processos de subjetivação: questões epistemológicas e históricas. In: ALMEIDA, L. (org.). A psicologia contra a natureza: reflexões sobre os múltiplos da atualidade. Niterói: Editora da UFF, 2013, p. 27-55.

 

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