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Intuição, duração e memória em Henri Bergson

Kauê Vinícius de A. Silva
Pós-graduado em História, Sociedade e Cultura - PUC-SP

1. Henri Bergson (1859-1941) é tido por alguns como o grande último metafísico ocidental no sentido forte do termo. Se tal afirmação possa ser demasiadamente exagerada, ao menos não podemos desconsiderar sua importância na história do pensamento ocidental do século XX. Apropriando-se do conhecimento científico de seu tempo, o filósofo francês defendeu uma filosofia de “superação da condição humana” e de “experiência total”. Para tanto, fez-se valer da consciência, da intuição, da memória e do impulso vital como conceitos centrais de seu pensamento.

Para além das perspectivas contemporâneas de pensamento, das quais o pensador francês colocava-se em diálogo, sua filosofia responde em contraposição mais radical à toda uma história pautada na Ideia platônica e na tese do ser de Parmênides. Bergson propõe inverter a leitura da filosofia remetendo-se, em certo sentido, ao pensamento heraclitiano, trazendo o movimento e a fluidez como questão central a ser pensada em sua intensidade e radicalidade. Para Bergson, ao contrário do que o mundo das Ideias projeta (o real - o ser - como imutável, incorruptível), o pensamento é movimento, e por isso, é necessário que a filosofia voltea pensar este movimento e seu poder criativo. É através desta chave de leitura filosófica sobre o movimento que sua concepção de memória é descrita.

2. Contexto científico-filosófico do autor
Iniciemos pelo esclarecimento do que seja a filosofia como atividade. Como nos lembra o professor Mário Porta, a filosofia pode parecer um “espaço onde reina o capricho, podendo cada um dizer o que quiser” (PORTA, 2014, p. 27). No entanto, basta dedicar-se ao seu estudo sistemático para entender que a filosofia não se trata de apontar meramente “crenças” e “opiniões” sobre determinados temas, mas sobretudo, de propor“problemas e soluções” (PORTA, 2014, p.27). Dito isto, nos cabe retomar as questões que Bergson se colocava e localizá-las na história da filosofia para entendermos suas problematizações e considerações.
Nascido em Paris, em 1859, Bergson viveu a fremente passagem do final do século XIX para o século XX, sendo contemporâneo das investidas da segunda fase da revolução industrial, dos intensos e fortuitos debates filosóficos e das pesquisas científicas que ganhavam força e volume naquele tempo, com destaque para as teorias positivistas, evolucionistas e psicológicas.
Neste ínterim, Bergson via-se entre os espiritualistas kantianos de um lado e o positivismo de Herbert Spencer e de Hippolyte Taine de outro, Por fim, “recusando o espiritualismo vago dos primeiros, seguiu os segundos, por respeito aos fatos” (VIEILLARD-BARON, 2007, p. 12). Contudo, logo rompe com o positivismo spencereano apontando seus limites e seu determinismo no que diz respeito à liberdade. É na contracorrente do criticismo kantiano e do cientificismo positivista que a filosofia de Bergson se desenvolve. O filósofo francês projeta-se como o grande nome de um '“espiritualismo oxigenado'” e “'cientificamente entusiasmado'”.
A propósito, Bergson ao converter-se ao espiritualismo não o fez sem um chão já trilhado. Desde Pascal haviam perspectivas divergentes ao racionalismo que, mesmo não contrárias à razão e à ciência, defendiam a intuição – o conhecimento imediato – e a vida interior como temas capitais de suas questões.
Após a superação da querela entre racionalistas e empiristas/espiritualistas por meio da crítica kantiana, vê-se surgir o romantismo alemão como novo movimento filosófico que através da “experiência estética” visava chegar ao “conhecimento dos segredos mais profundos do universo” (GALLEGO, 2018, p. 32). Foi atravésde alguns pensadores, a exemplo de Félix Ravaisson, Jules Lachelier e Émile Boutrouxque Bergson entrou em contato com os desdobramentos do romantismo, apropriando-se do que viria a ser conhecido posteriormente como “positivismo (ou realismo) espiritualista”.
Apropriando-se destas referências, Bergson vai além do romantismo enquanto perspectiva filosófica. O espírito científico, próprio da passagem do século XIX para o XX, abarca sua filosofia, de modo que o autor,em muitas passagens de seus textos,induz reflexões de ordem psicológica, por exemplo. O problema sobre a temporalidade humana; o modo como os homens a interpelam, muitas vezes movidos à certa angústia e negação acerca da própria finitude; assim como a capacidade da memóriaem resgatar vivências, experiências e temporalidades outras,é um destes temas em que tanto sua filosofia quanto a incipiente psicanálise de seu tempo buscaram pensar. Neste sentido, é evidente as aproximações entre sua filosofia e as investidas científicas – sobretudo entre a psicologia e a psicanálise, acerca os temas e questões pensadas.

3. Inteligência, intuição e duração
É a partir do debate entre a natureza da filosofia e do surgimento de novas ciências que Bergson ousa repensar aspectos da tradição filosófica, a partir de uma perspectiva nova. O tempo não é concebido à maneira clássica, mas como relação entre duração e memória. Para entender a concepção tempo faz-se necessário considerar a intuição da duração como elemento fundante e central. A intuição é tida como a única via em que se pode chegar à compreensão das coisas e do mundo quando a inteligência “não dá conta, ou seja, quando fracassa”. Por sua vez, a inteligência é a faculdade que captura a matéria espacial, os fenômenos e suas essências. Trata-se de uma “faculdade de produzir categorias rígidas”, portanto uma “faculdade fabricadora” (VIEILLARD-BARON, 2007, p. 59). Logo, a inteligência se desencadeia através de uma adequação estruturada e estruturante à função, à aplicabilidade e à praticidade.
Ora, tais aplicabilidades dão-se por meio das ciências através das experiências e de seus resultados acerca das coisas do mundo, dos corpos inorgânicos mais especificamente. Trata-se de pensar os corpos como instrumentos. O comentador Vieillard-Baron, ao discorrer sobre este aspecto, aponta que “o papel da inteligência só é verdadeiramente compreendido a partir do momento em que ela aparece claramente como produto da vida” (VIEILLARD-BARON, 2007, p. 64). Nele, o fluxo da vida dá-se por três caminhos: a inação, o instinto e a inteligência, sendo que o primeiro é próprio da vida vegetal, o segundo da vida animal e o terceiro da vida humana. Este último não é concebido por Bergson como um conhecimento desinteressando e meramente especulativo, mas caracteriza-se por sua flexibilidade em relação ao instinto, produzindo, como dito acima, objetividade diante da matéria. (VIEILLARD-BARON, 2007, p. 65).
A inteligência, neste processo, não é naturalmente destinada a compreender a vida, mas sim forjada em artifícios próprios, de modo a mapear, quantificar, matematizar, geometrizar e estruturar as coisas do mundo. Há, portanto, uma descontinuidadeinerente que projeta sua capacidade lógica de construção. Esta descontinuidade considera o tempo com certa uniformidade, dividido em blocos sucessivos e estanques, tratando-se, portanto, do tempo espacializado.
Para além da inteligência, Bergson apresenta a intuição como um movimento pertencente à duração. Diferentemente do tempo espacializado, linearizado e homogêneo, a duração manifesta-se de modo contínuo, ininterrupto, num intenso fluxo vívido. Na obraO pensamento e o movente o filósofo sugere intuirmos sobre a duração e, ao discorrer, nos aponta para uma tensão resultante de tal exercício:


Mas se, em vez de pretender analisar a duração (ou seja, no fundo, fazer sua síntese com conceitos), nos instalarmos primeiro nela por um esforço de intuição, teremos a sensação de uma certa tensão bem determinada, cuja própria determinação aparece como uma escolha entre uma infinidade de durações possíveis. A partir daí, percebem-se quantas durações se quiser, todas muito diferentes umas das outras, embora cada uma delas, reduzida a conceitos, ou seja, considerada exteriormente dos dois pontos de vista opostos, sempre se resume à mesma indefinível combinação do múltiplo e do um. (BERGSON, 2006, p. 35).


Essa sensação de tensão, exposta acima, evidencia a pluralidade e a heterogeneidade das durações absorvidas pela intuição, de modo que, segundo o filósofo, ao conceitualizá-las, estas nos escapam. A intuição é tida como um método que possui como pano de fundo a substituição da relação sujeito/objeto pela relação interioridade/exterioridade. Tal substituição considera a subjetividade capaz de exercer sua autorreflexão, e assim, “descobrir em si a origem da interioridade, a duração que resiste à toda divisão intelectual.” (VIEILLARD-BARON, 2007, p. 60).
O que muda, então, com essa nova compreensão da intuição? Ora, a interioridade e os fatos psíquicos são “qualidades puras” ou “multiplicidades qualitativas”, ao passo que “sua causa situada no espaço é quantidade”. (BERGSON, 2006, p. 25). Nesta chave de leitura, a intuição pode ser interpretada como uma capacidade de iluminar as camadas do eu profundo, do inconsciente, revelando elementos e processos em que o mundo externo pouco (ou nada) se aproxima. Portanto, podemos defini-la como um tipo de conhecimento distinto do conhecimento lógico, científico e aplicado, exercida na própria dinâmica da duração.

4. Em busca da memória
Ora, se a intuição é desencadeada na dinâmica própria da duração, cabe-nos aqui apropriar-nos dos termos definidores desta última. Em A evolução criadora Bergson escreve:


Pois nossa duração não é um instante que substitui um instante: haveria sempre, então, apenas o presente, nada de prolongamento do passado no atual, nada de evolução, nada de duração concreta. A duração é o progresso contínuo do passado que rói o porvir e que incha ao avançar. Uma vez que o passado aumenta incessantemente, também se conserva indefinidamente.(BERGSON, 2015, p. 13).


A duração é passado que se faz presente. Este passado “sempre em andamento, se avoluma sem cessar de um presente absolutamente novo” (BERGSON, 2015, p. 52). É o fluxo ininterrupto, movimento absoluto e essencial da vida. Um “devir que dura”, uma “mudança que é própria substância”, como nos lembra Deleuze. Sendo um fluxo contínuo, a duração faz-se memória. Ambas estão imbricadas, relacionadas numa condição de temporalidade alargada, onde o passado e o presente fundem-se, potencializando uma condição de liberdade. Nestes termos, a memória não é limitada às imagens de registros, como muitos sugerem imaginá-la, muito menos uma faculdade, como afirma. Sobre tal questão Bergson infere que:


A memória, como procuramos prová-lo, não é uma faculdade de classificar recordações em uma gaveta ou de inscrevê-las em um registro. Não há registro, não há gaveta, não há aqui falando, sequer uma faculdade, pois uma faculdade se exerce intermitentemente, quando quer ou quando pode, ao passo que o amontoamento do passado sobre o passado prossegue sem trégua. (BERGSON, 2015, p. 13).


Ao considerar que a memória não é uma faculdade de classificações de nossas recordações, mas uma “conservação e acumulação do passado no presente”, Bergson sugere que, para apropriarmo-nos deste passado, devemos “colocarmo-nos de saída nele”, ou seja, devemos movimentarmo-nos em direção à sua imagem, essencialmente virtual mas que ganha “contornos mais nítidos” quando deslocamo-nos do presente para um passado mais geral e, em seguida, para uma região mais precisa deste passado.
Deleuze, ao discorrer sobre essa memória virtual, esclarece que sua categoria é ontológica. Bergson dá um “salto na ontologia” ao propor um “passado geral” do qual podemos chegar aos passados particulares. Afirma Deleuze: “Saltamos realmente no ser, no ser em si, no ser em si do passado. Trata-se de sair da psicologia; trata-se de uma Memória imemorial ou ontológica”. (DELEUZE, 2012, p. 48). É desta memória virtual, deste passado geral ontológico que se chega às memórias plurais. Segundo Bergson, este salto à memória ontológica se realiza pois não seria possível retomá-lo por meio de recomposições de presentes. O que significa dizer que não “partimos do presente para o passado, não partimos da percepção à lembrança, mas do passado ao presente, da lembrança à percepção”. (DELEUZE, 2012, p. 54).
Tais inferências apontam para uma questão cara à filosofia bergsoniana já apontada acima, mas que se faz necessário reforçar: “o passado é '“contemporâneo””do presente que ele foi”, ou seja, o passado não é uma temporalidade estanque ao seu próprio presente. Não “designam momentos sucessivos, mas momentos que coexistem” e, este passado que coexiste no presente não é um mero fragmento, um recorte, mas sim um passado total: “é todo o nosso passado que coexiste com cada presente”. (DELEUZE, 2012, p. 50).
Para tal formulação desta contemporaneidade entre o presente e passado integral, Bergson recorre a um esquema didático: a metáfora do cone invertido.
Fazendo uso das geometrias cônicas do século XVII, o filósofo francês representa a memória total em um volumétrico cone invertido onde a base AB assume as memórias mais gerais, ao passo que quando trazidas e contraídas pelo vértice S toca o plano P que representa nosso presente, nossa dinâmica corpórea, material. Deste modo, não só o passado AB coexiste em P, mas também seus pares A'B', A''B'' em aproximação com o vértice.

A memória seria concomitante com as demandas presentes da matéria, sendo o ponto S do vértice nosso corpo que se move no presente, estando aberto ao passado num diálogo fluído, onde nossa cabeça, nosso cérebro aparece como uma “ponta afiada”, uma “proa de barco”. (GALLEGO, 2018, p. 100).

Sobre estas demandas, Bergson escreve: “De modo geral, de direito, o passado só retorna à consciência na medida em que possa ajudar a compreender o presente e a prever o porvir: é um batedor da ação” (BERGSON, 2006, p. 61). Neste sentido, a consciência presente, em contato com os níveis de acesso ao passado pela memória, se movimenta ora por um passado mais contraído, ora por um passado mais dilatado (lembremo-nos do desenho do cone invertido), de modo a exercer seu potencial criador e sonhador do qual um “autômato consciente” não seria capaz de realizar, uma vez que limita-se ao “nível mais contraído do seu passado”. (GALLEGO, 2018, p. 99). Logo, Bergson ao indicar este contato da consciência presente com o passado, nos fornece uma perspectiva de liberdade própria e inerente, uma vez que é por meio desta relação que a potência criativa se desenvolve.
Conclusão
Ao observarmos a história da filosofia ocidental, desde a antiguidade aos nossos dias, damo-nos conta de que a questão sobre o tempo – e sobre a memória, como desdobramento – é um dos temas mais instigantes da reflexão humana. A temporalidade nos é constituída enquanto condição sinequa non. Somos seres no tempo, o que significa dizer que estamos na condição de transitoriedade, de perenidade e finitude. Porém assumir esta condição de modo radical e realista poucos o fizeram.
Se desde os antigos gregos buscava-se uma solução metafísica para driblar a condição passageira e perene do tempo, seja indicando o mundo das Ideais como a realidade em si, seja atribuindo o destino das almas humanas ao infinito, deslocando, por assim dizer, o homem de sua condição temporal,podemos inferir que,no entanto, a questão sobre o tempo permanece.
Vimos que Bergson, ao debruçar sobre a questão do tempo, nos apresenta uma chave de leitura sobre a intuição – entendida como uma capacidade humana exercida na duração do tempo – que nos possibilita pensar a temporalidade de modo mais alargado, não fazendo-se valer de conceituações e paradigmas para se chegar à determinados graus da consciência.
A memória, por sua vez, entendida como consciência temporal, é resultado desta condição transitória do homem no mundo. Vimos que Henri Bergson pensou esta questão de modo ímpar na história da filosofia, contribuindo para uma relação entre homem e tempo de modo inédito na tradição. A apropriação da temporalidade, exercida através da intuição e da memória reconfigura nossa relação com o tempo. É desta relação que a memória ganha uma valoração distinta entre outras categorias, trazendo-a para o centro da reflexão.
É claro que uma abordagem sobre amemória em Bergson, assim como os demais temas aqui apresentados, nãose esgotam em uma exposição rápida e introdutória como realizamos acima. Ela se espraia e está diretamente ligada à outras questões e reflexões presentes ao longo das obras do autor. No entanto, o que nos cabe pensar é como seu pensamento – tido como pensamento da diferença – pode contribuir para uma certa ideia de temporalidades e desdobramentos mais dinâmicos e criativos em nosso filosofar.Neste sentido, podemos concluir que Henri Bergson transformou profundamente a filosofia de sua época, sobretudo aos temas aqui brevemente expostos. Sua contribuição acerca aos estudos e reflexões sobre o tempo, a memória e a intuição ainda fazem-se influentes na filosofia contemporânea, o que confere sua reconhecida importância filosófica.

Referências bibliográficas

BERGSON, Henri. Memória e vida: textos escolhidos. São Paulo: Martins Fontes, 2006.
______. A evolução criadora. São Paulo: Folha de S. Paulo, 2015.
DELEUZE, Gilles. Bergsonismo. Tradução de Luiz B. L. Orlandi. São Paulo: Editora 34, 2012.
GALLEGO, AntonioDopazo. Bergson: o intocável fantasma da vida. São Paulo: Salvat, 2018.
PORTA, Mario Ariel González. A filosofia a partir de seus problemas: didática e metodologia do estudo filosófico. São Paulo: Loyola, 2014.
VIEILLARD-BARON, Jean-Louis. Compreender Bergson. Petrópolis: Vozes, 2007.