O outro como elemento central para o conhecimento de si
Adenaide Amorim Lima
Doutoranda em Filosofia - UFSM. Bolsista Capes
O outro, na teoria do reconhecimento, é fundamental para a identidade do eu. O eu precisa do outro para se afirmar como eu. Essa discussão é vasta e, no presente texto, eu gostaria de ressaltar a contribuição socrática para esse debate, a partir da interpretação de Foucault, exposta na obra A hermenêutica do sujeito. Para ilustrar esse processo que é de natureza filosófica, utilizarei alguns trechos do filme Kiriku e a feiticeira.
A ideia é mostrar o quanto o desenvolvimento do personagem central do filme pode espelhar o processo de conhecimento de si em sua relação com os outros.
Tudo começa com o sentido atribuído por Sócrates a dois princípios que são indissociáveis na filosofia antiga: o “conhecimento de si” (gnôthi seautón) e o “cuidado de si” (epiméleia heautou). Estes princípios estabelecem uma intrísica relação entre o sujeito, a verdade e a espiritualidade, pilares que integram a direção tomada pelo personagem princial do referido filme, o menino Kiriku, em sua busca pela verdade. Na condição de criança, Kiriku representa o genuíno filósofo e a infinita potência do recomeço do pensamento.
Como sabemos, a primeira vez que surge a inscrição “conhece-te a ti mesmo” é na cidade de Delfos, na entrada do oráculo, no templo dedicado a Apolo. Segundo Foucault, o preceito “conhece-te a ti mesmo” não estava relacionado com o “cuidado de si”. Foi Sócrates, segundo os testemunhos de Platão e Xenofonte, quem inaugurou esses princípios como um conjunto de práticas relacionadas com o sujeito e a verdade. O próprio Sócrates se autointilulava “o homem do cuidado” por acreditar ter recebido dos deuses a incubência de lembrar aos outros a importância do cuidado de si.
Alguns aspectos relevantes do filme
Kiriku e a feiticeira é uma animação baseada em um conto africano, dirigido pelo francês Miguel Ocelot e lançado em 1998. Kiriku, personagem principal, é uma criança que já falava na barriga de sua mãe, nasceu sozinha e apesar de recém-nascido, Kiriku tem uma percepção do mundo bastante aguçada e é extremamente astuto e curioso. Pelo fato de possuir um comportamento nada passivo em relação aos costumes e aos problemas da sua comunidade, Kiriku é considerado, pelos adultos conservadores de sua tribo, um menino mal educado. Por ser diferente das outras crianças, os membros de sua atribo acreditavam que Kiriku poderia trazer desgraças para a aldeia.
Além de Kiriku, outros personagens são destaques no filme: o ancião que é bastante respeitado e tem um papel pedagógico muito importante e bastante valorizado na aldeia, ele transmite aos mais jovens os saberes, os mitos, as crenças e as histórias dos antepassados de seu povo; no entanto, ele também transmite os seus próprios medos em relação ao desconhecido e, dessa forma, mantém os jovens na ignorância de certos saberes e com medo de ir além do já sabido.
Afeiticeira Karabá, uma bela mulher com alguns poderes, mas que aparentava ter bem mais. Karabá se beneficiava do status do ancião, do seu medo, da sua ignorância e da influência que este exercia sobre o povo de sua aldeia para amendrontá-los e deixá-los submissos aos seus caprichos. Karabá possui um segredo e se esconde por detrás da máscara da maldade e dos discursos falsos para não se revelar e, assim, manter o seu poder, manter o seu status; no entanto ela desconhecia a limitação e a fragilidade da imagem que criou de si mesma.
Outro importante personagem é o avô de Kiriku, pai do seu pai, uma figura filosófica que tinha a maior parte das respostas para as perguntas de Kiriku, mas, principalmente, instigava Kiriku a encontrar as respostas por si mesmo. O avô de Kiriku mora em uma distante montanha, para Kiriku chegar até ele precisa enfrentar vários desafios e adquirir certos conhecimentos que o transforma, enquanto sujeito, conhecimentos sem os quais não teria consiguido passar pela vigilâncio de Karabá e destituir o seu poder sobre o povo da aldeia.
A busca pela verdade e pelo conhecimento de si
No diálogo platônico Alcebíades, o personagem-título pretende governar a cidade, e acredita ter recebido a formação necessária dos seus mestres para tal tarefa. Quando ele é interpelado por Sócrates e se vê conduzido a olhar primeiro para si, antes mesmo de olhar para o seu desejo de governar a cidade, ele não só percebe que recebeu uma formação deficiênte como também que ignorava que era ignorante. Após o encontro com Sócrates, o outro que provoca mudança no seu eu, Alcibíades pôde lançar um olhar profundo sobre si mesmo e tomar consciência que cabia a ele o cuidar de si, ocupar-se consigo e modificar-se enquanto sujeito para tornar-se digno da direção da cidade.
De acordo com Michael Foucault (2006): “O cuidado de si é uma espécie de aguilhão […] e constitui um princípio de agitação, um princípio de movimento, um princípio de permanente inquietude no curso da existência” (p. 11). É um caminhar orientado e consciente de metamorfose de si mesmo no cronótopo de uma existência, operando assim uma mudança radical no sujeito até caracterizar-se em um modo de vida, em uma arte de viver.
Kiriku ao nascer, ele próprio corta o cordão umbilical que o ligava a sua mãe, fica de pé perante ela e se apresenta. Ele repete várias vezes, ao longo do filme, que sabe quem ele é e o que quer saber. Uma vez que ele tem o conhecimento sobre si, vive nessa permanente inquietude citada por Foucault para responder aos seus questionamentos que sempre acaba por modifica-lo, ao mesmo tempo em que o coloca diante de novas inquietações, ou seja, Kiriku vive uma permanente ocupação consigo mesmo, no sentido descrito por Simon Goldhill (2007): “O autoconhecimento constitui a primeira e a última necessidade, se você quer entender as perguntas e as respostas da sua vida” (p. 13).
Kiriku, que carrega uma curiosidade que é nata de toda criança em relação ao mundo, representa analogamente o papel de Sócrates aqui, através dos seus por ques direcionados aos outros. Diante de respostas insatisfatórias ou mesmo da ausência de respostas, ele acaba se colocando, também, na a posição de Alcibíades, conforme descreve Foucault:
Alcibíades era ignorante relativamente a seus rivais. Descobre, pela interrogação socrática, que ignora. Descobre até mesmo que ignorava sua ignorância e que, por consequência, deve ocupar-se consigo mesmo para responder a esta ignorância, ou melhor, para pôr fim a ela (FOUCAULT, 2006, p. 309).
Nesse processo, Kiriku se movimenta entre duas posições de sujeito: na posição de Sócrates quando questiona sobre o que quer saber, e na posição de Alcibíades quando não obtendo a respostas satisfatórias e permanecendo na ignorancia procura sair deste estado em busca da verdade capaz de salvá-lo. Kiriku com seu “[...] não-saber e saber de seu não-saber” (NIETZSCHE, 2003, p. 47), percebe que não consiguirá seguir sozinho, é preciso um mestre, um sábio, para guiá-lo no cuidado de e na sua relação com a verdade, bem como na constituição do seu si mesmo.
E o que seria esse si? Segundo Foucault (2006), o si neste caso seria a alma, a alma não enquanto essência, mas enquanto sujeito, sujeito de ação, de ideias e de pensamento. Os gregos e os romanos entendiam a “[...] constituição do sujeito como fim último para si mesmo, através e pelo exercício da verdade” (FOUCAULT, 2006, p. 385). Dessa maneira, o corpo constitui-se apenas em um instrumento para se chegar a tal finalidade. Nesse caso, “[...] poderíamos chamar de 'espiritualidade' […] as modificações de existência [...] que constituem, não para o conhecimento, mas para o sujeito, para o ser mesmo do sujeito, o preço a pagar para ter acesso à verdade” (FOUCALT, 2006, p. 19).
Kiriku é este personagem, meio Sócrates, meio Alcebíades, em busca da verdade e do conhecimento de si mesmo. A sua busca da verdade o indispõe com alguns membros de sua tribo e exige que ele trilhe um caminho solitário, até encontrar o mestre. Nesse processo ele acaba descobrindo quem, de fato, ele é. Mas para isso ele precisa de um outro, alguém que não ele mesmo.
Os outros como exigência para o conhecimento e cuidado de si
Kiriku, por meio de seus por ques, reconhece a sua ignorancia e que não está apto para resolver os problemas que aflinge sua aldeia, percebe que precisa do outro para constituir-se enquanto sujeito. Ele sai em busca desse outro que seja capaz de responder aos seus por quês e o ajude a crescer. Kiriku com a juda da sua mãe mergulha em uma aventura para encontrar o seu avô, o outro que irá ajudá-lo na sua formação.
O conhecimento e a constituição de si, e posteriormente a salvação de si, perpassa por diferentes tipos de relação e, consequentemente, com diversos saberes e verdades. De acordo com Foucault (cf. 2006, p. 295), a constituição do sujeito no primeiro momento tem por base três tipos principais de relações: do indivíduo com a família, do indivíduo com o médico e do indivíduo com o enamorado. Com o nosso personagem Kiriku vemos sua primeira relação se constituir com sua mãe, depois com seu mestre e, posteriormente com Karabá, que será a sua enamorada.
Após nascer, Kiriku se delicia com o banho, mas é advertido por sua mãe a não gastar muita água, devido a sua escassez na aldeia. Segundo sua mãe, Karabá, a feiticeira, teria secado a fonte que abastecia a tribo. Eles agora dependiam da fonte de Karabá. Ela usava dessa necessidade como artifício para controlador, explorar e amendrontar os aldeões. É de sua mãe também que Kiriku, mediante suas perguntas, descobre que seu pai e seus tios foram lutar contra Karabá e todos foram comidos por ela e que o único homem adulto guerreiro que restava, seu tio mais moço, estava naquele momento indo lutar contra Karabá e cumprir com o seu destino.
Kiriku corre e vai ao encontro do seu tio para ajudá-lo. O restante da história, apesar de interessante, ultrapassa os limites deste trabalho. O que queremos evidenciar aqui é: foi por meio de sua mãe (família) que Kiriku adiquiriu a sua primeira visão de mundo, apesar do que sua mãe disse não ser verdade, esse era o saber legitimado por todos na aldeia. Este saber constituiu para Kiriku seu ponto de partida para empreender a busca pela verdade, destoando dos outros membros da aldeia que permaneceram com esse saber, assumindo-o como verdadeiro.
Kiriku, além da sua curiosidade, não tem medo e deseja saber do seu tio o porquê de Karabá ser malvada. Seu tio diz que não precisa de uma razão. Ao que Kiriku retruca: “Precisa”. Quando Kiriku e seu tio retornam para a sua aldeia o ancião estava ensinando as crianças que não se deve combater aos feiticeiros e as feiticeiras e aquele último homem que foi lutar contra Karabá, a feiticeira, foi castigado e não volta mais. Nesse momento, aparece o tio e Kiriku e surpreende a todos. Ele pergunta ao ancião: “Você sabe por que Karabá a feiticeira é malvada?”. O ancião tenta responder: “Claro… eu sei tudo…”. Kiriku: “E por que então?”. O ancião: “Bem… a… porque é uma feiticeira”. Kiriku: “Ah! E porque ela é uma feiticeira?”. O ancião resmunga algo e depois diz: “Você me cansa, você é muito pequeno e não se deve fazer perguntas sobre os feiticeiros”.
Como ninguém de sua tribo tinha uma resposta convicente, Kiriku decide conhecer Karabá, a feiticeira. Em um dado momento no filme quando tem uma oportunidade ele se aproxima bem perto de Karabá o que a faz levar um susto. E lhe pergunta: “Karabá, feiticeira, por que você é malvada?”. Ela se mostra assustada com a insolência daquele pequenino, más principalmente pela sua pergunta. Em certo momento ele se apresenta: “Eu sou Kiriku e sabe o que quer, e eu quero saber por que você é malvada?”. Karabá se irrita e expulsa Kiriku sem responder ao seu questionamento.
Karabá não tinha o conhecimento de si mesma, da limitação de seu poder e da posição de sujeito que ocupava, apesar de parecer sólida, na realidade, era bastante frágil. Quando Kiriku a interroga, assim como Sócrates fez com Alcibíades, o efeito foi o mesmo em ambos. A posição que ocupavam e seus saberes não eram suficiêntes para Alcibíades governar a cidade e para Karabá continuar mantendo seu status de poderosa feiticeira, perante todos da aldeia.
Após muitos obstáculos, Kiriku tem o seu momento de entrega e realização plena quando, enfim, se vê diante do seu avô, o sábio, o seu mestre. O avô de Kiriku é apresentado com vestes brancas, sentado no topo de uma longa escadaria azul celeste, representando uma espécie de divindade que emana paz e serenidade, alguém que alcançou um alto nível de beatitude, conforme Foucault: “A verdade é o que ilumina o sujeito; a verdade é o que lhe dá beatitude; a verdade é o que lhe dá tranquilidade de alma. Em suma, na verdade e no acesso à verdade, há uma coisa que completa o próprio sujeito e o que transfigura” (2006, p. 21).
Kiriku faz todas as perguntas que deseja e a cada resposta ele sobre um degrau até ficar frente a frente com seu mestre. Sua sede de sabedoria o leva a perguntar sobre conhecimentos caracterizados por Foultault como ornamentais ou supérfluos. Seu mestre redireciona sua curiosidade, e lhe orienta a focar naquilo que realmente é útil, naquele momento. O Sábio leva Kiriku a entender que é importante ser pequeno, coisa que Kiriku considerava um problema, o faz entender também que é importante ser grande: “Fique feliz, e quando for grande fique feliz por ser grande”. Essa passagem nos faz lembrar os exercícios espirituais epicuristas da serenidade e gratidão profunda.
Kiriku ouve de seu mestre que a maioria dos problemas da sua aldeia não eram causados por Karabá. As pessoas da aldeia achavam que ela era a grande causadora de seus males e ela, por sua vez, não os desmentiu. O sábio diz então: “Quanto mais medo as pessoas tem, mais poderosa ela (Karabá) se torna… ela só quer fazer o mal a todo mundo porque ela sofre… ela sofre dia e noite sem parar… porque enfiaram na coluna vertebral dela um espinho envenenado… É o espinho que dá a ela os poderes mágicos”.
Kiriku sabe como retirar o espinho e fazer com que Karabá não sofra mais e, com isso, acabar com a sua maldade. Entende que certos saberes o obrigam a ter determinadas responsabilidades, então pede a seu avô um amuleto contra Karabá, a feiticeira, quando seu avô lhe responde: “Não! Sua força vem da ausência de talismã, a feiticeira conhece o mundo dos feitiços, enganam melhor os homens que acreditam estar protegidos e não desconfiam de nada. Em compensação, ela fica desarmada diante da inocência pura e de uma inteligência sempre atenta e livre”.
Kiriku retira o espinho da coluna vertebral de Karabá e seu saber a liberta. Ela volta a ser ela mesma e, como forma de gratidão e a pedido de Kiriku, ela toca seus lábios nos lábios dele e seu poder ainda existente faz com que ele cresça e se torne um belo homem. Nesse momento, Kiriku abre os braços como um sinal de libertação, que podemos facilmente associar ao gesto de conversão, nas palavras de Foucault:
[…] não pode haver verdade sem uma conversão ou sem uma transformação do sujeito, […] que esta conversão pode ser feita sob a forma de um movimento que arranca o sujeito de seu status e de sua condição atual (movimento de ascenção do próprio sujeito; movimento pelo qual, ao contrário, a verdade vem até ele e o ilumina) (2006, p. 20).
É o que acontece com Kiriku e Karabá ao serem transformados e libertados mediante a verdade. O saber de Kiriku foi suficiente para libertar Karabá e a si mesmo. A libertação e a transfiguração de Kiriku só foram completas quando Karabá, agora livre, o beija e o faz crescer. Como podemos perceber, três tipos de relação fizeram com que Kiriku se constituisse em Sujeito pleno: a sua relação com sua mãe, com seu mestre, e por fim, com Karabá. No final ambos se reconhecem como amantes e ficam juntos.
O processo de libertação de Kiriku é um processo de encontro com os demais e, a partir destes encontros, o conhecimento da verdade e de si mesmo se concretiza. O filme revela que o processo de libertação do personagem, a exemplo da exigência que Sócrates fez a Alcebíades, é um processo pessoal e coletivo: uma busca pessoal, com repercussões coletivas.
Conclusão
Ao analisarmos o filme Kiriku e a feiticeira, na perspectiva do diálogo entre Sócrates e Alcibíades, a partir da interpretação de Foucault, entendermos que os conhecimentos de carater informativos, por mais intensos e amplos que sejam, mostram-se insuficiêntes e ineficazes na constituição e formação do sujeito. A formação do sujeito precisa passar, necesariamene, pelo confronto com o outro, com o diferente de si mesmo. É nesse confronto que a identidade do eu é forjada. Tanto a interpretação do diálogo platônico Alcebíades por Foucault, quanto a postura do personagem Kiriki, no filme Kiriku e a feiticeira, convergem para ratificar que o conhecimento de si é um processo e que este processo não pode ser realizado sozinho.
A exigência da filosofia socrática afirma que reconhecer a ignorância é apenas o primeiro passo na jornada de Alcebíades. Em relação ao filme, por mais astuto, curioso e questionador que fosse Kiriku, sozinho ele também nada saberiaa respeito de si mesmo. Para cuidar e conhecer a si mesmo é preciso o outro, para que haja não somente encontro com a verdade, mas também a libertação do sujeito e o crescimento espititual, no sentido grego do termo. Foi esse o papel de Sócrates e do avô de Kiriku relacionados aqui neste texto.
Referências bibliográficas
FOUCAULT, Michel. A hermenêutica do sujeito. 2 ed. São Paulo: Martins Fontes, 2006.
GOLDHILL, Simon. Amor, sexo e tragédia: como gregos e romanos influenciam nossas vidas até hoje. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2007.
NIETZSCHE, Friedrich Wilhelm. Escritos sobre educação. São Paulo: Loyola, 2003.
Referência audiovisual
KIRIKU E A FEITICEIRA. Direção: Michel Ocelot. Produção de Didier Brunner.
França: Gébéka Films, 1998. 1 DVD. Animação. Duração: 74 minutos. Colorido.