A articulação criativa da vida humana mediante o desenvolvimento da técnica
Renato Nunes Bittencourt
Doutor em Filosofia UFRJ
O debate acerca da relação entre Filosofia e Técnica/Tecnologia é fundamental no desenvolvimento da Humanidade em sua trajetória civilizacional marcada pela sua intervenção contínua sobre a natureza circundante. Qualquer postura fóbica em relação ao progresso técnico corre o risco de descambar para um viés passadista-reacionário e a-histórico por desvalorizar tais empreendimentos humanos rumo ao seu domínio concreto sobre a realidade. A grande questão que nos cabe defender reside na democratização dos recursos tecnológicos de modo a promover a emancipação e o bem-viver das pessoas e dos povos.
Uma investigação sobre a importância da Técnica e da Tecnologia na constituição da vida humana em seu percurso civilizacional é de grande importância para nossa própria reapropriação existencial, já que estamos a cada momento recorrendo aos utensílios dos mais diversos naipes para potencializar nossas aptidões, empreendimentos e ações no mundo circundante.
Talvez poder-se-ia considerar que a relação da Técnica e da Tecnologia na vida humana neguem toda experiência do Trágico. Muito pelo contrário, a tragicidade da existência constantemente evoca a necessidade da intervenção técnica/tecnológica para a tentativa de resolução de impasses aparentemente irresolúveis pois a vida humana não é apenas acomodação ao mundo, mas também intervenção sobre o mundo, assim como determinadas formas de uso dos aparatos técnicos-tecnológicos produzem efeitos que colocam em risco nosso bem-viver, a saúde da Biosfera e nosso futuro vital.
A natureza humana da técnica-tecnologia
O imaginário popular considera que a tecnologia é uma criação extraordinária, oriunda da natureza engenhosa de um seleto grupo de pessoas altamente qualificadas muito além do comum. Nada disso. Tecnologia, em sua essência, é a capacidade de se fabricar objetos para modificar a realidade circundante, de modo a satisfazer as necessidades concretas da vida humana. Obviamente existem muitas obras tecnológicas que exigem conhecimentos operacionais muito específicos que estão além das habilidades prosaicas do vulgo, mas em sua substancialidade prática qualquer ser humano pode ser considerado como alguém potencialmente capacitado a criar coisas que permitem melhor intervenção sobre o meio ambiente. Técnica, por sua vez, pode ser definida simplificadamente como o conjunto de processos de realização de uma determinada arte, profissão ou habilidade.
Dito isso, técnica e tecnologia geralmente se entrelaçam nas suas funcionalidades, ainda que nem sempre um perito saiba montar um utensílio por ele mesmo utilizado. Talvez um virtuose do violino não tenha a capacidade de fabricar o instrumento que o luthier efetiva artesanalmente com requente e esmero. Na realização técnica, o ser humano atua imanentemente no manuseio das coisas, pois corpo e mente estão sempre razoavelmente conjugados nessas ações. Mesmo nos esportes de maior apelo popular nem só de espontaneidade se estabelece a carreira de um atleta. No futebol a cobrança de uma falta exige determinadas técnicas para que se dê um chute eficiente na bola e se vença a barreira adversária.
Nessas condições, a técnica está presentificada na vida humana em suas mais variadas expressões, cabe apenas que consigamos perceber isso e assim nos reconciliarmos com nossa própria existência, já que a consciência alienada de uma vida despersonalizada nos impede de compreender nosso poder de transformação da realidade circundante, mesmo nos atos aparentemente mais banais e simplórios. Conforme sentencia Heidegger (2001, p. 22), “Realizando a técnica, o homem participa da disposição, como uma forma de desencobrimento”.
A Modernidade se constitui pela apologia humana da técnica e seu poder de se assenhorar do mundo. As forças indomadas da natureza submeter-se-iam ao arbítrio humano mediante o desenvolvimento das capacidades operacionais de intervenção na natureza circundante. Há nesse espírito de inovação uma crença otimista no aperfeiçoamento das formas de vida e o alcance de uma felicidade jamais efetivada até então, daí a elaboração das narrativas utópicas que colocam os sábios e os cientistas como os gestores de uma sociedade ideal ainda não alcançada.
Os aparatos tecnológicos, considerados em suas particularidades, amplificam as capacidades humanas e permitem a otimização de sua força e de tempo. Convém que saibamos eventualmente resolver as dificuldades prosaicas com nossas próprias capacidades psicofísicas em caso de um eventual colapso material que venha afetar nossa infraestrutura. Nem sempre podemos confiar plenamente na eficácia dos artifícios técnicos e aí a contingência se apresenta diante de nós, exigindo uma hábil capacidade para lidarmos com o transtorno operacional. Para esse tipo de situação insólita deve sempre haver uma alternativa concreta que minore nossos riscos e danos.
É um fato que nem todos foram educados no escotismo ou outras disciplinas rigorosas que incentivam a capacidade de sobrevivência em situações adversas e assim acreditamos que as máquinas jamais falharão e, se falharem, teremos técnicos competentes ao nosso dispor. Na vida corriqueira, não é de modo algum inadequado transferirmos para um profissional qualificado a responsabilidade de resolver problemas de funcionamento das coisas, pois não somos autossuficientes e assim promovemos a maximização das competências operacionais em nossa diversificada teia societária.
Os utensílios e as máquinas são elaborados para facilitar nossa atuação no mundo e, em condições ótimas, para permitir que o tempo poupado seja dedicado ao ócio desprovido de culpabilidade ou em atividades que sejam dotadas de sentido para nós. Com efeito, a vida concreta funcional se constitui pelo uso dos frutos materiais proporcionados pelos aparatos técnicos que facilitam nosso modus operandi existencial. Segundo Herbert Marcuse,
Se a consumação do projeto tecnológico envolve romper com a racionalidade tecnológica predominante, por sua vez a ruptura depende da existência continuada da própria base técnica, pois é essa base que torna possível a satisfação das necessidades e a redução da labuta – ela permanece a base real de todas as formas de liberdade humana (MARCUSE, 2015, p. 220).
O grande perigo para nossa própria salubridade ocorre quando, ao otimizarmos o tempo que seria dispendido em tarefas que são convenientemente executadas pelas máquinas, aproveitarmos essa margem cronológica para nos dedicarmos mais e mais ao trabalho produtivo rentabilizado para alguma causa externa, não importa em qual configuração, circunstância que ocorre regularmente. Transferimos para as máquinas ações automatizadas para rentabilizarmos ainda mais nossa performance profissional, em nome do sucesso da empresa e dos negócios. Seria muito mais aprazível e interessante que o tempo poupado se destinasse ao sono melhor, ao nada fazer, aos amores, aos amigos, ao festivo, ao lúdico, aos passeios, ao teatro, aos concertos, aos livros, ao cinema, dentre muitas outras alegres possibilidades. No fundo, a motivação da criação técnica brota do ensejo humano de se interiorizar mais, conquistar mais tempo disponível para si mesmo e para o caráter maravilhoso da existência. Por isso é um equívoco qualquer imprecação moralista que satanize os artifícios técnicos.
Prometeu e Fausto são duas grandes personificações da apologia da técnica como uma força criativa capaz de emancipar o ser humano e lhe proporcionar a liberdade existencial no processo de constituição das suas formas no mundo. Ambos sofreram os infortúnios de uma vida dedicada pela busca do saber absoluto que daria ao homem a chave de compreensão dos enigmas do universo. Certamente não temos tantas pretensões assim em nossa vida prosaica, mas ao resolvermos um problema prático. graças ao uso do suporte técnico. nos sentimos como que pequenos deuses, pois quem transforma o microcosmos também interfere no macrocosmos. O extraordinário da criatividade humana e sua magnitude se manifestam em eventos talvez imperceptíveis, daí a importância de desenvolvermos o senso contemplativo do mundo, e assim o uso dos artifícios técnicos é bastante significativo, pois podemos desviar a atenção das urgências materiais para a beleza encantadora da vida. Tal como é belamente apresentado pelo magistral Gilberto Dupas,
Só poderemos aproveitar das tecnologias com sabedoria se soubermos viver sem elas; e se – na contramão do globalismo – soubermos cultivar menos rapidez, espaço para o capricho, sentido do local, capacidade para desconectar e para não estar sempre de prontidão. Em suma, cercados pelo bosque do progresso, temos que manter um olhar no claro do céu (DUPAS, 2014, p. 148).
É razoável que saibamos acender uma fogueira sem qualquer recurso elétrico talvez em uma bela experimentação natural ao ar livre, mas no decorrer da vida cotidiana é inviável deixarmos de lado as facilidades tecnológicas em nome de um pretenso orgulho de autossuficiência. Afinal, o próprio ser humano é o criador das coisas técnicas e herda esse saber acumulado pelas experimentações pregressas. Em todas as particularidades da vida humana o progresso técnico-científico promove o aprimoramento das suas condições básicas de existência. A vida humana se tornou qualitativamente melhor através da consolidação da expertise sanitária-medicinal-farmacêutica. O que seria de nossa existência sem a descoberta da penicilina ou sem os procedimentos de esterilização?
A técnica, portanto, é uma capacidade expressiva de o ser humano se adaptar ao meio ambiente e transformá-lo criativamente conforme suas conveniências. Obviamente muitos excessos ocorreram pela sanha devastadora do homem em se assenhorar do mundo ao redor sem qualquer preocupação sustentável. O colapso global em andamento comprova claramente tais efeitos prejudiciais para o futuro das formas de vida em nosso planeta exaurido. Contudo, é a própria técnica, alinhada com os paradigmas humanistas, que permite maior controle sobre qualquer prática predatória das forças naturais que, ao fim e ao cabo, aceleram nosso porvir apocalíptico caso não adotemos uma efetiva agenda de sustentabilidade gerencial, que não apenas preserve adequadamente a Biosfera, mas o próprio ser humano, pois de nada adianta abraçarmos as árvores e adotarmos posturas profissionais degradantes que violam a dignidade da pessoa humana. Por conseguinte, todo aparato técnico está ao serviço do homem, podemos dizer talvez ingenuamente, mas essa estrutura técnica só se torna benéfica quando a motivação por qualquer intervenção no seio da natureza ocorre para promover o efetivo bem-viver da coletividade social, tarefa que exige uma efetiva sociabilização dos meios de produção e um profundo senso de responsabilidade ambiental. Sempre importante destacar, toda forma de vida humana sobre a Biosfera já é uma interferência imediata em sua base material e nossa condição extensiva impede qualquer outra possibilidade.
A perspectiva fóbica em relação ao progresso científico deprecia os avanços tecnológicos por considerar que estes são os responsáveis pelos males da humanidade quando utilizados mediante propósitos destrutivos. Devemos adotar cautela acerca desse tipo de tese, pois é fato que muitas vezes as inovações técnicas são direcionadas para promover dominação, destruição e morte do meio ambiente e do homem, mas a responsabilidade moral desses atos violentos não repousa sobre os aparelhos, as máquinas ou instrumentos, mas sim sobre aqueles que empregam esses recursos para subjugar outrem. Uma foice pode ser empegada como arma por um cruento agressor, mas sua origem é destinada aos sagrados afazeres campestres. Cabe então analisarmos qual a intencionalidade latente no processo de criação de um dado utensílio para definirmos seu mérito ou demérito junto ao bem-viver humano. Uma arma de fogo não é forjada para ser mero objeto de decoração. O objetivo de uma metralhadora é aniquilar o inimigo de maneira rápida, eficiente e talvez até mesmo de modo impessoal. Conforme argumenta Lewis Mumford,
Não apenas a indústria pesada se desenvolveu em resposta à guerra – muito antes de ter dado qualquer contributo significativo para as artes da paz – como a quantificação da vida e a concentração no poder, como um fim em si mesmo, aconteceram tão rapidamente neste setor como no comércio. Por trás desse fato esteve o desprezo crescente pela vida: pela diversidade, pela individualidade, pela rebeldia e pela exuberância naturais da vida (MUMFORD, 2018, p.116).
Temos aqui um exemplo de utensílio originariamente confeccionado a partir de intenções mortíferas. A metralhadora não foi fabricada para promover o bem comum. Uma revolução social, todavia, não se faz apenas com a pregação de palavras impetuosas. Em boa medida as armas destrutivas são necessárias para implementar as mudanças estruturais almejadas por essas forças multitudinárias. Após a realização desse projeto transformador talvez seja possível cessar as armas e promover a construção de uma nova ordem política, mas as circunstâncias históricas demonstram que tal situação ideal raramente ocorre e as mobilizações armadas permanecem. Debates sobre a necessária desmilitarização das forças de segurança dos aparatos repressivos do Estado são recorrentes quando ocorrem horrendos excessos realizados por membros dessas corporações, postulando-se que a alternativa mais razoável para se combater a anomia e os desajustes sociais são operações táticas de inteligência e de prevenção ao crime.
Uma soldadesca profissionalmente despreparada e que enxerga a sociedade marginalizada como sua inimiga certamente é incompetente para portar qualquer arma de fogo, pois os prejuízos para a população do entorno são irreparáveis. A perspicácia técnica pode prevalecer sobre a truculência armada. No entanto, qualquer governança autoritária sempre prefere recorrer ao uso desmedido da força bruta no lugar do recurso ao conhecimento tático, pois assim granjeia a adesão populista de segmentos reacionários da sociedade civil alinhados com traços necrófilos de personalidade.
Diversos pensadores apresentaram as mais instigantes concepções acerca da relação entre o homem e a tecnologia. Apresento por hora a tese de Marshal McLuhan, segundo o qual os meios de comunicação e os aparatos técnicos são extensões do homem: “O que chamamos de 'mecanização' é uma tradução da natureza, e de nossas próprias naturezas, para formas ampliadas e especializadas” (MCLUHAN, 1974, p. 76). Cada criação humana visa potencializar um sentido de nosso organismo ou uma função operacional, aperfeiçoando-a e permitindo maior controle sobre as coisas. As capacidades humanas são naturalmente limitadas, e suas criações técnicas permitem maior apreensão da realidade.
Uma interpretação espúria acerca da condição humana consideraria tal perspectiva uma violação da ordem natural das coisas; no entanto, mesmo os povos originários mais conectados com o ritmo metabólico da natureza utilizam-se de recursos técnicos criados por eles mesmos ou por terceiros para que potencializem as suas habilidades práticas. Nessas condições, não existe nenhuma pretensa violação da ordem natural da vida quando o ser humano, em qualquer condição espaço-temporal, forja aparatos e apetrechos para melhor lidar com as suas demandas prosaicas. O ser humano complementa, através de suas habilidades engenhosas, o que por natureza não lhe pertence de imediato. Se adotarmos uma postura purista acerca do uso da técnica para aprimorar a vida humana diversos transtornos práticos ocorrerão na vida humana. Uma pessoa mutilada deveria renunciar ao uso de uma prótese para melhorar a sua capacidade de locomoção e de trabalho. Talvez somente pessoas adeptas do crudivorismo e do frugivorismo sejam tão extremas na aversão ao uso dos recursos técnicos e, mesmo assim, em especial na questão alimentar.
Uma vida sustentável requer a maior capacidade de autonomia e de autossuficiência humana acerca da sua interlocução com o meio ambiente e é sempre razoável que saibamos acionar nossas habilidades corporais para não dependermos das facilidades técnicas que poupam nosso tempo precioso e recursos, mas quando os benefícios técnicos estão ao nosso alcance imediato não é um avilte contra a ideia de natureza renunciarmos aos artifícios para melhor comodidade prática.
Conclusão
No decorrer do artigo apresentamos uma reflexão livre sobre a indissociável relação entre o ser humano imerso na dinâmica do mundo e o exercício das suas capacidades operacionais. Não se trata de filotecnia teórica ou otimismo prático, mas sim de uma constatação realista de que o fato de vivermos já estimula no ser humano desejo de intervenções sobre a natureza. É inegável que o desenvolvimento das suas habilidades técnicas conduz aos processos criativos de artefatos que ampliam sua capacidade de envolvimento com o mundo circundante.
Obviamente que a ausência de uma consciência ecológica motiva a violentação humana sobre a natureza, eliminando todo equilíbrio na Biosfera e colocando assim em risco a própria existência humana no futuro, já que o imediatismo espoliador dos recursos naturais é incapaz de planejar qualquer projeto em longo prazo. Todavia, quando o critério decisório do ser humano em sua atuação no meio ambiente é movido pelo propósito de promover ao máximo a dignidade das formas de vida, o uso de sua racionalidade técnico-científica se converte em poderoso instrumento de reestruturação da ordem vital do mundo, angariando assim a possibilidade de uma mudança radical de paradigmas produtivos. Somente dessa maneira poderemos afirmar a legitimidade de uma prática de vida sustentável.
Planejar uma migração interplanetária após exaurirmos as forças vitais da Biosfera é uma infâmia, que, no entanto, alimenta muitas distopias revestidas com caracteres grandiosos de única alternativa possível. A razão técnica não é inimiga da essência da vida, mas sua aliada, caso quem dela faça uso esteja orientado pelo amor ao mundo e aos seres que integram sua pluralidade de signos, sentidos e valores.
Referências bibliográficas
DUPAS, Gilberto. Desafios da sociedade contemporânea. São Paulo: UNESP, 2014.
HEIDEGGER, Martin. A Questão da Técnica In: ______. Ensaios e conferências. Trad. de Emmanuel Carneiro Leão, Gilvan Fogel e Márcia Sá Cavalcante Schuback. Petrópolis: Vozes, 2001, p. 11-38.
MARCUSE, Herbert. O homem unidimensional: estudos da ideologia da sociedade industrial avançada. Trad. de Robespierre de Oliveira, Deborah Christina Antunes e Rafael Cordeiro Silva. São Paulo: EDIPRO, 2015.
MCLUHAN, Marshall. Os meios de comunicação como extensões do homem. Trad. de Décio Pignatari. São Paulo: Cultrix, 1974.
MUMFORD, Lewis. Técnica e civilização. Trad. de Fernanda Barão e Isabel Fernandes. Lisboa: Antígona, 2018.