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O TRÁGICO COMO IDEIA DE DIONISÍACO EM UMA FILOSOFIA DA TRAGÉDIAN’AS BACANTES DE EURÍPEDES*

Tarcísio Quadros Macêdo

Graduado em filosfoia (UESB)

  1. Introdução

A tragédia grega coloca em jogo as paixões humanas como convite a teorizar os mais diversos aspectos da vida. Não é diferente no caso de As bacantes, de autoria do tragediógrafo Eurípedes, que tratando do deus Dionísio, seus ritos e cultos, e da oposição veemente de Penteu ao estabelecimento do deus na cidade de Tebas, convida a pensar a existência humana e suas múltiplas contradições para uma reflexão do que seja o homem.

O núcleo do drama trata do que está para além da racionalidade, do que é sabedoria dionisíaca e sua ignorância. Como se fez o homem, racional e sensato diante do estético, da loucura, e como se dá com essa parte da sua psique que capta um objeto multifacetado, que seria o próprio mundo, a noção mesma de tudo ou o todo, personificado no enigma visceral e apaixonado da aparição de Dionísio, que vem confundir a ordem, questionar o justo de uma época, embriagando de vinho os homens cansados e revelando seu mistério à mulheres escravizadas pela ordem? Que é, em maior ou menor pesar, a ordem a que estão, por necessidade, submetidos todos os homens, submetidos a uma ordem, em todos os tempos?

Sempre intentando não desvincular da poesia trágica de Eurípedes o papel fundamental do mito em uma reflexão filosófica sobre a existência, o artigose realizará em três vias: 1. Explorando, do não existencial ao existencial, uma abordagem estética que encontra no dionisíaco o fundamento da própria existência, por ressentimento desta; 2. Através do argumento da necessidade de um Penteu em manifestar, por oposição máxima, os riscos de uma ditadura da sobriedade, inserir uma ideia de dionisíaco que, atravessando a própria essência da tragédia e arrastando essa personagem (Penteu) ao entusiasmo, manifeste a defesa dessa ideia (de dionisíaco), em que ela se insira na existência como admissão da própria impossibilidade humana, considerada como fundamental, nessa reflexão que se faz até as últimas considerações, entendendo essa humanidade também não racional;3. Por via de uma reflexão livre que abarque todos os aspectos e elementos constitutivos que essa poesia trágica tem a nos oferecer, na relação de Dionísio com o homem, em uma intersecção que leva em conta a constituição de uma identidade, esfacelada no mito das Bacantes, para aí apostar, pela própria necessidade do equilíbrio inerente a essa reflexão, em um retorno do trágico.

O propósito desse artigo é clarificar um mistério através de uma reflexão sobre ele, e que por isso não deverá se afastar de um fundo de silêncio.

 

  1. Penteu, um herói necessário

 

Ao tratar da tragédia As bacantes, Rachel Gazolla refere-se também ao contraste apolíneo para a peça, aqui representado em sua forma extrema na figura do herói Penteu, de forma que:

 

Dionísio achega-se, na leitura do masculino, ao mundo feminino, sempre recolhido com dificuldade pelos homens, uma vez que é a mulher que leva em si a explosão da vida, pertinente a força dionisíaca. Apolo, mais próximo do mundo masculino nessa leitura, não tem o mistério vital sensível e incompreendido do nascimento, mas transporta a luta clara entre contrários, concreta ou abstratamente pensada, como esta se apresenta na tensão do arco e da lira e na tensão dos agudos e graves na música (GAZOLLA, 2001, p. 88).

 

Ora, se na ideia de Dionísio temos os elementos relacionados à origem, a passagem da não existência para o que virá a existir, ele associa-se, desta forma, ao que não sabemos, mas buscamos, a ideia de um fundamento básico e ignorado, através do qual se ergue, sob a ideia de Apolo, a própria existência conflituosa. Apolo é similar, porém antitético a uma origem, mas pode-se dizer, conecta-se como essa mesma origem, uma vez que existir é conflito e contradição, organizados em harmoniosa tensão. É essa tensão, tão marcante na tragédia, o elemento que define a identidade do existente considerado em sua forma atuante, logo, em sua forma possível.

Roberto machado, em sua obra O nascimento do trágico, se pergunta sobre o dionisíaco nietzschiano:

 

O que é, então, o dionisíaco nietzschiano? Fundamentalmente, o culto das bacantes. Isto é, o culto manifestado nos cortejos orgiásticos de mulheres que, em transe coletivo, dançando, cantando e tocando tamborins em honra de Dionísio, invadiram a Grécia vindas da Ásia, para fazer seu deus ser reconhecido, glorificado pelos gregos (MACHADO, 2006, p. 211).

 

Ainda considerando que, em O nascimento da tragédia, Friedrich Nietzsche, na seção 10 do referido livro, afirma que: “É uma tradição incontestável que a tragédia grega, em sua mais vetusta configuração, tinha por objeto apenas os sofrimentos de Dionísio” (NIETZSCHE, 2007, p.66). Na mesma página encontramos esta outra afirmação: “que por trás de todas essas máscaras se esconde uma divindade, eis o único fundamento essencial para a tão amiúde admirada “idealidade” típica daquelas célebres figuras” (NIETZSCHE, 2007, p.66).

O impulso dionisíaco é reconhecido por Nietzsche como a essência do trágico, considerada a questão da tragédia como um todo. Apesar de Eurípedes, no contexto da evolução do gênero trágico, ser aqui apontado como o primeiro autor a ir contra a verdadeira tragédia, Nietzsche aponta esse tragediógrafo, ao final de sua vida, rendendo-se a essa essência, depois de todo o combate que empreendeu contra ela. O primeiro a fazê-lo, foi o que mais se arrependeu, deixando um dos maiores registros sobre a ideia, a questão, e a verdade dionisíacas, como que arrebatado por algo incombatível.

De fato, a importância do dionisíaco para a tragédia, sobretudo em seu começo, deve ser compreendida na posição que as representações teatrais ocupavam, dentro de um contexto mais amplo, as festas em honra a Dionísio. Nesse sentido, Deise Malhadas, em seu livro Tragédia grega, descreve a procissão que conduz a estátua de Dionísio ao teatro:

 

Seguiam atrás os bois que iam ser oferecidos em sacrifício. Como lembrança da exigência do deus por ocasião da instituição de seu culto em Atenas, carregavam-se falos. Durante o trajeto cantava-se e os coros, antes da procissão deixar Atenas, dançavam junto a altares ou edifícios sagrados. Sacrifícios e banquetes preenchiam o restante do dia. Ao anoitecer, o cortejo voltava a Atenas, à luz de tochas, e colocava a estátua no teatro, que assim se tornava um espaço sagrado (MALHADAS, 2003, p.87).

 

Em relação com isso, e também com o dito anteriormente, emerge também a questão de uma filosofia do trágico, em contraposição a uma poética da tragédia – como é descrita por Aristóteles–, tão bem situado por Peter Szondi, na introdução de seu livro Ensaio sobre o trágico:

 

Desde Aristóteles há uma poética da tragédia, apenas desde Schelling, uma filosofia do trágico. Sendo um ensinamento acerca da criação poética, o escrito de Aristóteles pretende determinar os elementos da arte trágica, seu objeto é a tragédia, não a ideia de tragédia (SZONDI, 2004, p. 23).

 

Essa é a ideia da tragédia, centralizada no impulso, na força, sob influência dionisíaca, manifestada por oposição máxima em As bacantes, que nós pretendemos refletir sobre a existência humana. Entendido em seu fluxo natural, o fluir da vida identifica-se com o aspecto apolíneo, que harmonizando contradições, “cega-se” à influencia dionisíaca sobre a origem, o não sabido, no entanto, buscado sentido da vida:

 

Se Dionísio pode levar-nos para longe do civilizatório, Apolo pode prender nosso humano no excesso de civilidade ou na demência, quando negamos nossa própria fragilidade diante do que nos ultrapassa (GAZOLLA, 2001, p. 91-92).

 

Nesse sentido, uma investigação filosófica sobre a peça trágica As bacantes, do tragediógrafo Eurípedes, necessariamente nos conduz a uma dialética em busca de uma harmonia implícita na vida humana: sem negar a existência e a civilização, não ignora a embriaguez e a loucura necessárias. Essa dialética é viva e constante. Longe de querer superar, imiscui-se nas tramas, oculta-se nas máscaras, busca sempre renovar o sentido, afirmar a identidade na perenidade da constante mudança de todas as coisas. A antítese de tudo isso, e consequente desequilíbrio, reforçam esse mesmo sentido, no negativo, que se dá através do nosso herói trágico, Penteu. Na medida em que sua conduta imoderada atesta, como descrevemos, qual “caminho” seguir, Penteu é esse herói necessário em um poema trágico singular sobre a ideia dionisíaca posta como questão.

 

  1. Dionísio e o homem

 

Celebração, festividade, teatro, momento cívico e, mais tarde, com a introdução do culto de Dionísio, a dança, o ritual, os arrastamentos violentos de afetos, o próprio irracional protagonizando e vencendo em uma obra de Eurípedes: tudo isso pode ser entendido como tragédia. Mas é no contraditório e na tensão das paixões, máxima tensão purgadora, imitando e exagerando os comportamentos humanos que todo enredo trágico se organiza. Na tragédia As bacantes, um elemento central é personificado em um deus que reclama seu lugar privilegiado, da suspensão da sensatez, do juízo, ou seja, o lugar estético em detrimento da máxima tentativa de controle e ignorância que privilegia a razão e as instituições em um momento em que deveriam dar espaço para o deus que chega de Tebas. O coro conclama a prudência, pois o homem, além de racional, também é louco:

 

Ó venturoso!

                       Por teu demônio bom,

o deus te instrui em seu mistério.

Consagra-lhe a vida imácula!

Anime o tíaso tua alma-psiquê,

nos montes – pura catarse! –

                       dionisa-te (EURÍPIDES, 2010, vv. 71-78, p. 52).

 

Penteu, Rei de Tebas e herdeiro do deus, pode ser tomado como metáfora do desespero de um homem que tem que viver, mas que sabe que morrerá, aliás, como todos os homens. Por mais que não se acredita mais em deuses, o homem continua finito, continua trágico. Na humanidade, as civilizações surgem e desaparecem. Dionizar-se é reconhecer isso, é viver essa tensão e, por isso mesmo, também aproveitar a vida. Afinal, de nada adiantaria apenas escravizá-la, sacrificá-la, esperando por uma eternidade que não nos cabe, deixando de enlouquecer também, fruir o que podemos aproveitar; pois se os deuses fizeram aos gregos e a nós, mortais, Dionísio parece querer oferecer uma compensação, por exemplo, às domésticas escravas dos seus maridos, que não tendo da vida nada além de razão e ordem, dionizam-se como bacantes, dionizam-se de forma máxima, nos montes, dançando freneticamente.

Dionísio oferece aos homens a possibilidade de poderem fazer uma concessão à morte, só que em vida. A consciência da brevidade da vida nos faz desejá-la fruir de forma selvagem e breve. Mas por querermos ficar um pouco mais na vida, usamos de razão, instituições, regras. A questão central é que Penteu crê-se eterno, ainda que não tenha consciência disso. Essa disposição é uma certeza aparente que nos consola da nossa real condição, de mortais, e que Dionísio faz lembrar. Ele parece demonstrar essa certeza recusando o bom conselho sensato de Cádmo e recusando “a voz sábia de um sábio”, como afirma: “Fica longe de mim! Vai Dionizar-te!/ Não queiras me infectar com tua folia” (EURÍPIDES, 2010, vv. 343-344, p. 64).

De acordo com Krishnamurti Jareski:

 

Dionísio é o deus cuja epifania reveste-se dos contornos mais paradoxais, sobressai pela sua natureza contraditória e sua capacidade em subverter os ditames da realidade. Ele é simultaneamente benfeitor aos homens – faz deles donatários das graças da música e do vinho – e senhor da vida que acolhe, em seus aspectos mais aterrorizantes, o dilaceramento e a ingestão de vítimas sacrificiais (JARESKI, 2007, p. 215).

 

A vida humana é muito sofrida, precisa de compensações, vinho, música, dança, alegria. Mas seriam necessários mais que remédios, é preciso curar. No fundo esse é todo ímpeto humano: reconciliar definitivamente, deixar de angustiar-se, cessar o desespero, ser um só com a natureza, não precisar sobreviver e, para isso, erguer casas, trabalhar. Sempre nos admiramos como os outros animais e também as plantas “trabalham”, seguindo o curso infalível do instinto. A aparente contradição da natureza expressa-se no desejo das bacantes de reconciliação com a mesma, que para nós é selvagem, cruel, injusta.

Nossa sensatez, nosso juízo e nossa reflexão sobre as coisas e o mundo espelham a nossa demanda e parecem ter criado o nosso desejo de permanecer. Descobrimos o segredo da natureza, sabemos como ela funciona e criamos uma a nossa imagem e semelhança por desespero, para ficar mais um pouco ou muito no mundo. O nosso desejo de eternidade parece ter vindo dessa clareza, dessa lucidez, dessa razão de que poderíamos alterar o próprio curso do instinto para fazer com que a vida durasse mais. Dionísio é, ao mesmo tempo, o que não queremos ver sobre nós mesmos e também nosso ímpeto de retorno à natureza. Dionísio é toda contradição humana.

 

A tragédia grega, sobretudo, é solidária com qualquer reflexão que se empenhe em examinar a condição humana. Uma vez considerado no círculo funcional de sua existência, o homem mostra-se visceralmente sujeito a ser capturado pelo trágico, ser que é, ao mesmo tempo, imanente ao mundo e a ele transcendente (BARROS, 2013, p. 81).

 

Na peça As bacantes, Dionísio apresenta-se como uma pureza reconciliadora contra a extrema ignorância de Penteu, pois ignorantes todos somos, uma vez que é melhor pensar na vida, como pode-se contemplar nestes versos do coro:

 

                          Pureza, augusta divindade!

                        Pureza, paira,

                        asas-ouro, sobre a terra!

                        Ouviste o que Penteu vociferou?

 (EURÍPIDES, 2010, vv. 370-373, p.65).

 

Penteu é esse arrogante que vocifera contra a pureza, contra qualquer pureza, mesmo aquela possível, que é a de uma meia entrega à vida que permanece em Dionísio e que nos faz morrer um tanto quanto a única vida que temos e que existe. Não fazendo nenhuma concessão aos deuses, esta personagem representa, talvez, o mais trágico dos homens, pois a sua ira, que ele crê justa, não é apenas impiedosa, é contra o deus que encarna a contradição humana. O reconhecimento dessa contradição mostra-se para qualquer pessoa que já tenha vivido no mundo. Nesta perspectiva trágica do existente, Penteu encarna essa impureza e, sem o saber, o desamparo de quem só crê apenas viver.

 

  1. Conclusão

 

Contra todo tipo de arrogar-se a tudo controlar e a nada sentir, nada vivenciar: a impiedade dionisíaca é ser contra a vida somente para escravizá-la. Descobrimos a natureza, inventamos a cultura, somos o meio-termo entre ela e o como nos constituímos no agora. Com muitas saudades dessa natureza, além de um futuro não muito certo, como sempre mesmo não foi.

Ao priorizar a dimensão dionisíaca, bem mais presente na obra, consideramos partir de uma investigação, também, do apolíneo, explorando o par conceitual apolíneo-dionisíaco, em grande medida, legado a nós por Friedrich Nietzsche. Não desconsiderando os demais atributos que Dionísio assume nesse autor, todo o processo intentou investigar, a partir de um mito, o poema Euripidiano trágico As bacantes, no bojo de uma filosofia estética trágica, uma ideia de tragédia, de uma tragédia, que priorize uma sabedoria ou harmonia entre o racional e o civilizatório, e o não racional e o estético.

O uso das referências presentes nesse trabalho, dos autores e suas ideias, sempre se fizeram no caminho de permitir, seguindo o ritmo próprio à obra, uma abertura do uso racional do poema, em forma de enunciados conceituais, isto é, a um conhecimento que fizesse chegar em forma de uma ideia, na essência da tragédia, essencialmente dionisíaca, uma dialética viva entre o real, possível, e o buscado, desejado sentido da existência.

 

* O presente texto é uma versão, com título diferente e acréscimos, de um capítulo do Trabalho de Conclusão de Curso (TCC) de Licenciatura em Filosofia apresentado na Universidade Estadual do Sudoeste da Bahia (UESB), sob orientação do professor Doutorando Leonardo Araújo Oliveira.

 

Referências

 

BARROS, Gilda Naécia Maciel de. As bacantes: a face humana do irracional.Educação e Linguagem, v. 16, n. 2, jul.-dez., 2013, p. 77-97.

 

EURÍPIDES. As bacantes. São Paulo: Perspectiva, 2010.

 

GAZOLLA, Rachel. Para não ler ingenuamente uma tragédia grega. São Paulo: Loyola, 2001.

 

JARESKI, Krishinamurt. Os Paradoxos de Dioníso n’As Bacantes de Eurípides. Contexto, ano, XV, n. 14, 2007, p. 215-236.

 

MACHADO, Roberto. O nascimento do trágico: de Schiller a Nietzsche. Rio de Janeiro: Zahar, 2006.

 

MALHADAS, Daisi. Tragédia grega: mito em cena.Cotia: Ateliê Editorial, 2003.

 

NIETZSCHE, Friedrich. O nascimento da tragédia: ou helenismo e pessimismo. São Paulo: Companhia das Letras, 2007.

 

SZONDI, Peter. Ensaio sobre o trágico. Rio de janeiro: Zahar, 2004.