O desafio de uma filosofia decolonial
Arlindo Antonio do Nascimento Neto
Mestrando em Filosofia pela UFBA
O início da modernidade foi marcado por grandes mudanças que transformaram completamente a forma como as pessoas viam o mundo. Uma dessas mudanças importantes foi a maneira como passamos a entender o que significa ser uma pessoa. Essa ideia, influenciada principalmente pelo pensamento de René Descartes, não só teve um grande impacto na filosofia, mas também desempenhou um papel importante no pensamento europeu durante a época colonial.
Neste texto, queremos explorar como a ideia de pessoa na época moderna, especialmente sob a influência de Descartes, se relacionou com a maneira como os europeus pensavam sobre o colonialismo. Também queremos argumentar que é crucial superar essa ideia de pessoa, pois isso nos ajuda a construir uma filosofia que não esteja mais presa aos conceitos eurocêntricos que dominaram por tanto tempo. O desafio de uma filosofia decolonial é superar a noção moderna/eurocêntrica de sujeito.
Sujeito na modernidade: Descartes e a colonialidade
Na época moderna, a noção de ser humano como sujeito que objetifica a realidade começou a ganhar forma, principalmente com René Descartes (1962) e seu famoso cogito ergo sum (penso, logo existo). Isso trouxe uma abordagem filosófica que destaca o eu como uma pessoa independente. A ênfase de Descartes na separação entre mente e corpo levou a um individualismo que se tornou importante no pensamento moderno (HEIDEGGER, 2007, p. 104-105). Essa visão do sujeito como alguém isolado, capaz de entender e controlar a realidade, não só afetou o pensamento filosófico, mas também teve impacto nas práticas coloniais europeias.
Aníbal Quijano, ao falar sobre a colonização, destaca que não se tratava apenas de explorar recursos físicos, mas também de impor uma cultura. Ao retratar o sujeito como alguém isolado, capaz de racionalizar e hierarquizar, a colonização foi legitimada. A ideia eurocêntrica de que a razão europeia era superior e as culturas colonizadas eram inferiores foi crucial para justificar a exploração e a opressão. Isso mostra como a ideia de sujeito na modernidade está conectada à dinâmica do pensamento colonial.
Para começar, na crise atual do paradigma europeu de conhecimento racional está em questão seu pressuposto fundamental, o conhecimento como produto da relação sujeito-objeto. Deslocado dos problemas de validação do conhecimento nele implicado, esse pressuposto levanta outros que é pertinente apresentar aqui. Em um primeiro ponto, esse pressuposto, “sujeito”, é uma categoria referida ao indivíduo isolado, porque se constitui em si e diante de si mesmo, em seu discurso e em sua capacidade de reflexão. O cogito, ergo sun cartesiano significa exatamente isso. Um segundo ponto, “objeto” é uma categoria referida a uma entidade não somente diferente do “sujeito” - indivíduo, mas externo a ele por sua natureza. Terceiro, o “objeto” é também idêntico a si mesmo, pois é constituído de “propriedades” que lhe outorgam essa identidade, o “definem”, isto é, o delineiam e, ao mesmo tempo, o localizam a respeito de outros “objetos” (QUIJANO, 1992, p. 4).
Como apontado na citação acima, Quijano discute a crise atual do paradigma europeu de conhecimento racional, questionando seu pressuposto básico de que o conhecimento é resultado da relação sujeito-objeto. Ele aponta que esse pressuposto levanta questões importantes, especialmente no que diz respeito ao conceito de “sujeito” e “objeto”. O “sujeito” é descrito como um indivíduo isolado, que se constrói e se percebe a si mesmo através do seu discurso e da sua capacidade de reflexão, como expresso por Descartes. Por outro lado, o “objeto” é visto como algo externo ao sujeito e com uma identidade própria, definida por suas propriedades. Essa diferenciação entre sujeito e objeto e a atribuição de identidade e propriedades ao objeto são apresentadas como elementos fundamentais para entender a dinâmica da relação entre conhecimento e realidade.
Descartes, figura ímpar na cultura ocidental contemporânea, representa as premissas fundadoras da modernidade, contribuindo decisivamente para a consolidação da ideia de que o homem é capaz de se autodeterminar. Sua filosofia conferiu ao sujeito um inédito grau de soberania, onde o “eu” tornou-se responsável não apenas pelo direcionamento do pensamento, mas também pelas ações práticas dos indivíduos, como aponta Ribeiro (1995, p. 12-14).
No entanto, para fundamentar a liberdade e garantir o acesso do homem a conhecimentos verdadeiros, Descartes buscou demonstrar “logicamente” a existência de Deus e das verdades eternas. Apesar da defesa da autonomia da consciência, ele reconheceu a necessidade de uma metafísica, indicando que o fundamento último da verdade não poderia prescindir da fé. A influência cartesiana transcende seu tempo, sendo incorporada pela tradição iluminista. Entretanto, a metafísica de Descartes não foi completamente assimilada, gerando impasses na fundamentação do “eu”. A omissão dos iluministas em elaborar uma teoria que explicasse a natureza do “eu” contribuiu para os desafios enfrentados pela modernidade (Cf. RIBEIRO, 1995).
No século XVII, apesar do surgimento de teorias científicas desafiadoras, a metafísica ainda tinha uma importância significativa. A indagação sobre o fundamento último da verdade predominou na história da filosofia, seja sob uma perspectiva cosmológica ou teológica. A revolução cartesiana reside na inversão de perspectivas, atribuindo ao sujeito a capacidade de descobrir as verdades eternas por meio de sua razão, fundamentando-se em Deus (RIBEIRO, 1995, p. 9-10). Nesse cenário, uma análise detalhada dessa estratégia busca compreender não apenas o contexto histórico, mas também a contribuição de teorias antropológicas e psicanalíticas para entender a formação do sujeito na modernidade.
É inegável que a noção de sujeito concebida por Descartes desempenhou um papel fundamental no pensamento europeu colonizador. A autonomia radical conferida ao “eu” contribuiu para a legitimação da dominação colonial, consolidando a visão eurocêntrica que permeou as práticas de exploração e de opressão. A compreensão dessa interseção entre a filosofia cartesiana e a colonialidade é essencial para uma análise abrangente do impacto do pensamento europeu na formação histórica e cultural de diferentes sociedades.
Colonialidade e modernidade: Enrique Dussel e a crítica à eurocentricidade
Enrique Dussel oferece uma crítica que transcende a visão simplificada da Europa moderna como mera herdeira das tradições grega e romana, apontando-a como uma construção ideológica. Sua proposta, fundamentada em uma compreensão mais abrangente da modernidade, destaca a centralidade da Europa no contexto global desde 1492, desafiando a narrativa tradicional. Dussel questiona a noção de modernidade como uma força exclusivamente emancipadora ao lançar luz sobre a violência colonial que persiste ao longo do tempo.
A análise de Dussel revela uma relação complexa entre a Europa e as populações colonizadas, destacando a inconsistência da modernidade enquanto movimento unicamente emancipador. A justificação da exploração dos “outros” por meio de mitos civilizatórios evidencia a desumanização inerente à noção eurocêntrica de sujeito. A crítica de Dussel não apenas denuncia essas contradições, mas também propõe uma alternativa: a “Trans-Modernidade”. Este paradigma visa transcender os mitos e as responsabilidades eurocêntricas, acolhendo a diversidade e a alteridade como elementos fundamentais para uma compreensão mais completa da modernidade.
Quando questionamos a ideia de que a violência moderna é justificada por ideais civilizatórios e de inocência, conseguimos ver a injustiça de sacrificar vidas, tanto dentro quanto fora da Europa. Isso nos permite ir além das limitações da chamada “razão emancipadora”. Significa reconhecer que a razão iluminista favorece a Europa e desmentir a ideia de que o desenvolvimento moderno é sempre positivo (DUSSEL, 2000, p. 31). Mesmo dentro dos princípios do iluminismo, podemos superar isso ao valorizar a dignidade de grupos marginalizados pela Modernidade. Conforme Dussel (2000), é ao afirmar a inocência dessas vítimas e reconhecer sua identidade que podemos ir além da visão eurocêntrica, violenta e hegemônica da razão moderna.
A ideia de “Trans-Modernidade”, proposta por Dussel (2000) indica um projeto global de libertação, a partir da qual os grupos marginalizados pela Modernidade têm a chance de se realizar. Isso não implica apenas em atualizar a Modernidade europeia, mas sim em uma mudança profunda, em que tanto a Modernidade quanto os grupos ignorados por ela encontram uma coexistência positiva e produtiva. Esse projeto transmoderno busca uma solidariedade ampla entre diferentes grupos, como Centro e Periferia, Mulher e Homem, diferentes raças, etnias, classes sociais, Humanidade e Terra, Cultura Ocidental e Culturas do mundo ex-colonial, não apenas negando diferenças, mas valorizando e incorporando a diversidade (DUSSEL, 2000, p. 31).
Ampliando a discussão, Aníbal Quijano (2000) aprofunda a análise ao explorar a colonialidade do poder na América Latina. Ele destaca a associação entre o etnocentrismo colonial e a classificação racial como elementos cruciais para justificar a suposta superioridade natural europeia. Quijano ressalta a imposição de uma perspectiva binária, eurocentrada e racialmente fundamentada, que moldou as relações culturais em categorias como Oriente-Ocidente e primitivo-civilizado.
No contexto da resistência intelectual na América Latina, exemplificada por Enrique Dussel, a discussão se volta para o debate sobre desenvolvimento e subdesenvolvimento. Quijano (2000) enfatiza a necessidade premente de reconhecer que a modernidade, inicialmente desencadeada nas Américas, exerce impacto global em todas as esferas sociais e subjetivas. A “Trans-Modernidade” proposta por Dussel emerge como um convite para romper com as limitações eurocêntricas, buscando um reconhecimento mais amplo da globalidade e complexidade do fenômeno moderno.
As contribuições de Dussel e Quijano não apenas desvelam as contradições intrínsecas à modernidade eurocêntrica, mas também apontam para caminhos alternativos, desafiando a visão convencional e propondo um entendimento mais inclusivo e reflexivo da complexidade histórica e cultural. A superação da noção de sujeito, tal como concebida por Descartes, emerge como um ponto-chave nesse contexto, uma vez que ela desempenhou um papel crucial no pensamento europeu colonizador e, por conseguinte, nas dinâmicas globais da modernidade.
Essa reflexão revela as contradições da modernidade eurocêntrica, evidenciando a desumanização inerente à noção eurocêntrica de sujeito. Ao propor uma “trans-modernidade” apresenta-se uma alternativa que transcende os mitos e as responsabilidades eurocêntricas, acolhendo a diversidade e a alteridade como elementos fundamentais para uma compreensão mais completa da modernidade.
Desconstruindo visões eurocêntricas por meio da filosofia decolonial
A concepção do sujeito, originada na modernidade e alimentada pelo pensamento colonial europeu, perpetuou visões hierárquicas, etnocêntricas e raciais que se estendem ao longo do tempo. As reflexões críticas de Aníbal Quijano e Enrique Dussel convergem em um chamado uníssono para superar essa concepção limitadora e redescobrir uma compreensão mais rica e inclusiva do ente humano.
Quijano (2000), ao falar sobre a América Latina, mostra como a colonização afetou a região. Ele diz que a Europa Ocidental se considerava o centro do mundo moderno e isso levou a uma visão de superioridade racial. Isso fez com que a Europa pensasse que sua forma de ver o mundo era a única certa, dividindo o mundo entre os “civilizados” do Ocidente e os “primitivos” não civilizados. Essa maneira de pensar criou uma hierarquia social e cultural que ainda existe hoje.
De acordo com essa perspectiva, a modernidade e a racionalidade foram concebidas como experiências e produtos exclusivamente europeus. Sob essa visão, as relações interpessoais e culturais entre a Europa, especialmente a Europa Ocidental, e o resto do mundo foram codificadas em um conjunto completo de novas categorias: Oriente-Ocidente, primitivo-civilizado, mágico/mítico-científico, irracional-racional, tradicional-moderno (QUIJANO, 2000, p. 211). Em resumo, Europa e não-Europa. Mesmo assim, a única categoria com o devido reconhecimento como o “Outro” da Europa ou do “Ocidente” foi o “Oriente”. Não os “índios” da América, nem os “negros” da África. Estes eram simplesmente considerados “primitivos” (QUIJANO, 2000, p. 211). Por baixo dessa codificação das relações entre europeus/não europeus, a raça é, sem dúvida, a categoria fundamental. Essa perspectiva binária, dualista, do conhecimento, peculiar do eurocentrismo, impôs-se como hegemônica mundialmente no mesmo curso da expansão do domínio colonial da Europa sobre o mundo (QUIJANO, 2000, p. 211).
Enrique Dussel (2002) contribui para essa análise crítica ao revelar as contradições da modernidade eurocêntrica, questionando a visão convencional que a retrata como uma força exclusivamente emancipadora. A trans-modernidade emerge como uma resposta à necessidade de transcender mitos e responsabilidades eurocêntricas, abraçando a diversidade e a alteridade como elementos essenciais para uma compreensão mais completa da modernidade. Dussel desafia a visão eurocêntrica do sujeito ao destacar a desumanização intrínseca à noção eurocêntrica, revelando como a justificação da exploração dos “outros” se baseia em mitos civilizatórios.
Assim, reconhecemos a urgência de superar as limitações impostas pela noção de sujeito isolado, que contribui para a perpetuação de hierarquias sociais, raciais e culturais. A proposta de Quijano de reconhecer a colonialidade do poder na América Latina e a crítica de Dussel à tradição eurocêntrica da modernidade evidenciam a importância de descentralizar a narrativa histórica.
Quando olhamos para essas diferentes ideias, vemos uma oportunidade não apenas de criticar, mas também de construir uma filosofia decolonial completa e coerente. Essa filosofia não apenas entende a ligação entre poder, colonialismo e eurocentrismo, mas também valoriza as diferentes maneiras de pensar e as experiências históricas diversas. O objetivo é ir além da visão eurocêntrica da pessoa e, de forma mais ampla, promover uma compreensão genuína e descolonizada do ser humano em sua complexa relação com o mundo. Isso significa desafiar as limitações do pensamento europeu tradicional sobre o que significa ser humano.
Conclusão
A relação entre a noção de sujeito na modernidade, especialmente sob a influência cartesiana e o pensamento colonial europeu, desempenhou um papel crucial na legitimação da exploração e da opressão. A crítica de pensadores como Quijano, Dussel revela as limitações dessa concepção e propõe caminhos para uma filosofia decolonial.
A América Latina, como contexto específico, apresenta desafios únicos na compreensão da modernidade e da colonialidade do poder. A proposta de Dussel de “Trans-Modernidade” destaca a necessidade de uma narrativa mais inclusiva que reconheça a multiplicidade de influências na formação do mundo moderno. Essa perspectiva, se integrada a uma filosofia decolonial, poderia contribuir para uma compreensão mais autêntica e participativa da existência humana no mundo.
Assim, ter como meta superar a noção eurocêntrica de sujeito, abraçar a diversidade cultural e reconectar o conhecimento à prática, é um desafio que pode ser assumido por uma filosofia decolonial que transcenda as limitações da modernidade e contribua para uma compreensão mais inclusiva e justa da condição humana.
Referências bibliográficas.
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HEIDEGGER, M. Nietzsche II. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2007.
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RIBEIRO, Eduardo Ely Mendes. Individualismo e verdade em Descartes: o processo de estruturação do sujeito moderno. Porto Alegre: Edipucrs, 1995.