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Morrendo múltiplas vezes:
Refletindo sobre a (in)existência das travestis e mulheres transexuais

Armando Januário dos Santos
Mestrando em Psicologia - UFBA

A 22 de fevereiro de 2006, Gisberta Salce Júnior foi assassinada na cidade do Porto, após ser brutalmente espancada e violentada por 14 adolescentes, durante 8 dias (OLIVEIRA, 2018). O caso ganhou rápida repercussão, a partir do trabalho de entidades LGBT que denunciaram a crueldade sofrida pela travesti; mesmo assim, as penas sofridas pelos criminosos foram brandas, apesar de a perícia ter constatado que após ser espancada e agredida por vários dias, Gisberta foi jogada em um fosso, morrendo por asfixia.


A partir do breve relato acerca do assassinato de Gisberta, esse texto pretende discutir a morte das travestis e mulheres transexuais em suas diversas facetas. Morte não apenas como a extinção de um organismo biológico dito inteligente, mas as mortes daquelas que, vivas, já não existem. Morte em um espaço-tempo marcado pela pandemia da Covid-19 e da ascensão de governos autoritários, com práticas antidemocráticas, resultantes do aprofundamento da crise do neoliberalismo (LEITE, 2020). Morte em um país, por 13 anos consecutivos, líder mundial de assassinatos motivados por transfobia e com travestis e transexuais com expectativa de vida de 35 anos, segundo dados da Associação Nacional de Travestis e Transexuais (ANTRA) e do Instituto Brasileiro Trans de Educação (IBTE), publicados em 2021.
Nesses termos, a proposta aqui defendida é viabilizar uma discussão, seguramente inesgotável, sobre as (in)existências das travestis e mulheres transexuais, trazendo as contribuições filosóficas de Michel Foucault e Judith Butler em um profícuo diálogo com a psicanálise.

Desenvolvimento
A sociedade de disciplina conforme postulada por Foucault (2012a), assiste a sua transformaçãopara uma sociedade de desempenho (HAN, 2017). O autor não propõe o fim do modelo social foucaultiano, antes, afirma que a obediência, tão presente na sociedade disciplinar, abre espaço para o excesso de desempenho. Encontra-se em curso, a ascensão de um modelo social que atravessa os muros das instituições, no quais a negatividade e a proibição assistemà passagem para o poder sem fronteiras e a positividade exponencial, tornando os indivíduos, escravos e senhores de si próprios, na tessitura de uma sociedade caracterizada pela liberdade da autocoerção (HAN, 2017).
A sociedade disciplinar enquanto discutida por Foucault (2012a) conhece sua passagem para a sociedade do desempenho (HAN, 2017), a qual se caracteriza pelo aprofundamento da crise neoliberal e da fragmentação cada vez maior do sujeito, em um cenário pós-democrático (CASARA, 2017; LEITE, 2020). Na pós-democracia discutida pelos autores, conceitos científicos são corroídos e substituídos por convicções pessoais, carentes de fundamentação minimamente razoável (MBEMBE, 2017). Esse processo iniciado, a partir da crise de 2008 (LEITE, 2020), se aprofunda em um cenário pandêmico, no qual a sociedade de desempenho discutida por Han (2017) guarda estreita relação com a “sociedade de inimizade” (MBEMBE, 2017, p. 71): cansado, o indivíduo elege inimigos para odiar, formando bandos digitais com claros objetivos de exterminar os considerados estranhos (MBEMBE, 2017).
Os estranhos da sociedade de inimizade proposta por Mbembe (2017), não se encaixam na sociedade do desempenho (HAN, 2017), logo, neutralizá-los, por todos os meios possíveis, é imperativo (MBEMBE, 2017). Nesse cenário, as políticas neoliberais contribuem sobremaneira, porquanto trazem umaemblemática erosão das liberdades democráticas, com subsequentes rupturas dos marcos civilizatórios (LEITE, 2020; MBEMBE, 2017):a pós-verdade surge para agredir aqueles outros, os quais, apesar de viver na sociedade, não podem viver em sociedade. Demonizados e inseridos em uma lógica “bélico-binária” (CASARA, 2017, p. 181), são denominados inimigos (MBEMBE, 2017; CASARA, 2017). Suas existências são consideradas indignas de ser vidas, indignas mesmo de serem vividas (BUTLER, 2017b, p. 13-55). Conforme a autora, são corpos impassíveis de luto e que existem para ser destruídos.
Embora Han (2017) discorde da concepção freudiana sobre o aparelho psíquico, afirmando ser esse formado por leis e interdições que caracterizam a negatividade, e, portanto, incompatível com a psicodinâmica da sociedade do desempenho, a qual tem a positividade por fio condutor,o autor se aproxima de Freud (2010), quando aponta para o mal-estar causado pela sociedade do cansaço. Logo, seja pela negatividade (FREUD, 2010) seja pelo excesso de positividade (HAN, 2017), a civilização vivencia um contínuo mal-estar.
O mal-estar na civilização é agudizado, em situações críticas, a exemplo da morte (FREUD, 2010). Entretanto, quando se trata do inimigo, aquele considerado estranho, sua existência é condenada à extinção, tal qual ocorria nas sociedades consideradas primitivas; o processo pelo qual se dá a cessação da existência do inimigo, do estranho, pode ocorrer tanto no plano físico, quanto no plano psicológico, neste último caso, através de uma imaginação e desejo inconscientes (FREUD, 2010).
Entretanto, qual(is) aspecto(s) levaria(m) os sujeitos a desejar – e mesmo levar a cabo – a morte de outrem? Dois aspectos da subjetividade humana contribuem para esse desejo e prática: sexualidade e gênero. Ao propor uma sexualidade com múltiplas versões e formas, Freud (2016) iniciou uma forma inovadora de pensar os corpos no interior da cultura: a sexualidade não se reduz ao encontro dos genitais, na verdade, ela se encontra envolvida em todas as relações sociais que permeiam a cultura, além de se encontrar presente desde a infância e primitivamente ser bissexual.
Revisando os paradigmas freudianos acerca da sexualidade, Lacan (2010) aponta para a inexistência da relação sexual, porquanto O homem está inscrito na lógica fálica e A mulher, não-toda, não se encontra inscrita nessa mesma lógica (LACAN, 2010). O revisor da psicanálise freudiana sinaliza com isso para a existência de várias mulheres e não apenas d'A mulher, podendo, inclusive, os sujeitos assumir posições diversas, entre elas a masculina e a feminina, a despeito do sexo de nascimento e dos seus próprios corpos. Nesses termos, Lacan (2010) dialoga com o pensamento expresso por Foucault (2012b), quando este afirma que as relações sexuais aceitas em sociedade são aquelas que seguem a normahomem-pênis, mulher-vagina, defendendo sexo e corpo enquanto imateriais; para o filósofo, sexualidades e corporeidades resultam do dispositivo da sexualidade, o qual recorre a práticas discursivas para atingir estabilidade, moldando a realidade com verdades irrefutáveis; corpos e desejos, são, portanto, pedagogizados para a senda heterossexual (FOUCAULT, 2012a). Foucault (2012b) também dialoga com Freud (2016) ao sinalizar para uma ordem violentamente heterossexual e que desconsidera qualquer outra possibilidade de vivenciar a sexualidade, plurissexual e multiversa, conforme descrita pelo fundador da psicanálise.
Contudo, a sexualidade não é a única face da subjetividade utilizada para matar as travestis e mulheres transexuais: seus componentes – sexo e gênero – também são utilizados para viabilizar a extinção dos inimigos. O que seriam, porém, sexo e gênero? Butler (2017a) atenta para essa questão, discutindo sobre a verdade do sexo, viabilizada pelo dispositivo da sexualidade(Foucault 2012b), como mecanismo queregula as identidades consideradas coerentes por uma matriz de normas de gênero. Para a autora, gênero e sexo são ficções produzidas no interior da matriz heterossexual, a qual, dessa forma, ganha certo grau de solidez através da repetição de palavras, ações e gesticulações, de caráter performativo, incidindo na exterioridade dos corpos, para conservar o status nuclear fabricado por uma matriz cultural heteronormativa (BUTLER, 2017). Gênero e sexo, portanto,são ilusões estabelecidas na camada externa dos corpos para lhes conferir sentido, logo, corpos impossíveis de inserção nessa realidade fantasiosa são considerados subversivos e passíveis de punição (BUTLER, 2017a).Dialogando com Freud (2016), Butler (2017a) se refere a hipótese da bissexualidade primária, recalcada a posteriori, como produto discursivo gerador de práticas de exclusão no seio da heteronormatividade. A autora ainda assinala que a sexualidade, conforme expressa por Lacan (2010) resulta no que escapa do binário, regressando de maneira fantasmática, perturbando seguidamente o alinhamento sexo-gênero (BUTLER, 2017a).

Discussão
As travestis e mulheres transexuais experienciam a vida pela morte, através de um processo de contínua (in)existência.Elas existem onde não são e são onde não existem: suas vidas se encontram marcadas pela negação do acesso a plenitude da existência humana. Iniciando na família, passando pela escola e chegando ao mundo do trabalho – 90% das travestis e mulheres transexuais sobrevivem a partir da profissão do sexo por falta de políticas de inclusão no mercado formal de trabalho (ANTRA; IBTE, 2021) – o CIStema deslegitima suas identidades e as considera não-pessoas, passando, respectivamente, pela exotificação e obsessão dos e pelos seus corpos, chegando ao ódio, que atinge o clímax em assassinatos com requintes de crueldade.
Negar a existência do outro é impedi-lo de existir mesmo que organicamente ele se encontre vivo. A morte de Gisberta, executada tanto no seu corpo, quanto na memória paulatinamente apagada da sua história, demonstra a criatividade perversa do CIStema em matar travestis e mulheres transexuais, através de muitas maneiras.

Considerações que não finalizam
Esse breve texto analisou as múltiplas formas de (in)existência das travestis e mulheres transexuais. Entrelaçando filosofia e psicanálise,discutiu como a civilização se encontra em constante mal-estar, seja por leis repressivas, as quais negam o acesso a satisfação das metas pulsionais (FREUD,2010), seja pelo excesso de desempenho que positiva a auto-exploração e resulta em esgotamento (HAN, 2017).
As mortes vividas por travestis e mulheres transexuais apenas conhecerão seu fim somente quando o ódio contra essa população for ressignificado, algo distante, se analisarmos o contexto distópico existente no Brasil e em vários países governados pelo autoritarismo, que impõe pensamentos anticientíficos e negacionistas. Em contraposição a esse cenário, no Brasil, as eleições municipais de 2020 trouxeram para as câmaras municipais, travestis e mulheres transexuais, indicando que mesmo nas adversidades, é possível pensar formas de implosãod as normas de gênero, através da ocupação de espaços de poder.

Referências bibliográficas

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CASARA, R. R. R. Estado pós-democrático: neo-obscurantismo e gestão dos indesejáveis.2. ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2017.
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