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Considerações sobre Hans Küng e Enrique Dussel (2a parte)

Nesta segunda parte, começamos ressaltando a importância da história para Dussel. Quando fala em história, refere-se às condições particulares de cada um que, ao fundo, encerram a história da humanidade. Por isso, pensamos, o autor destaca a questão espacial, a geopolítica, e diz mesmo: “Trata-se então de levar a sério o espaço, o espaço geopolítico. Não é a mesma coisa nascer no Pólo Norte, em Chiapas ou em Nova Iorque”.(2)

A questão geopolítica é fundamental para o entendimento do pensamento de Dussel. Afinal, um dos pontos centrais de sua tese é o de que o mundo está organizado em centro e periferia. Assim, nascer e viver na periferia não é nem de longe próximo a nascer e viver no centro. A periferia recebe do centro toda uma carga cultural dominante, em todas as categorias de relacionamento.  O autor recorda-nos em boa hora o “ego cogito” cartesiano, percebendo, aí, um dos principais fundamentos para a cultura européia (central) explorar e “manipular” toda a periferia segundo os seus interesses. Nesse sentido, afirma: “a filosofia moderna européia, mesmo antes do ego cogito, mas certamente a partir dele, situa todos os homens, todas as culturas,e com isso suas mulheres e filhos, dentro de suas próprias fronteiras como úteis manipuláveis, instrumentos” (grifo nosso). (2)

Estabelecida essa leitura de mundo, podemos começar a ingressar na teoria dusseliana, compreendendo de que libertação nos fala. A libertação da periferia em relação ao centro – Europa e América do Norte –, a libertação dos povos periféricos da dominação e exploração dos que vivem no centro e a libertação mesmo daqueles que, embora vivendo no centro, têm os ouvidos abertos para as vozes que ecoam da periferia. Coadunando nossas palavras, lemos: “Trata-se da libertação neocolonial do último e mais avançado grau de imperialismo”. (2) 

Se a relação entre centro e periferia é viciosa, então é preciso re-construi-la. Para isso, considerando ser originário o vício, impende a sua des-truição  desde a origem. E Dussel aponta o berço da civilização ocidental, a Grécia Antiga, como o ponto de ruptura necessário para essa re-construção. E afirma: “Parmênides, da periferia da Magna Grécia, enuncia o começo radical da filosofia como ontologia: o ser é, o não-ser não é ... Mas o ser é o grego, a luz da própria cultura grega”. (2)  

Mas romper com esse sistema vigente há mais de 2.500 anos não é fácil. É preciso ir além, e Dussel vai. Busca o sentido primeiro do termo Logos, o qual fundamenta toda a estrutura grega. Essa explicação, embora não esteja clara na obra em tela, merece ser trazida de outras de suas obras, pois, entendemos, marca precisamente a ruptura com o mundo grego. Dussel ensina, então, que o termo Logos é tradução do que em hebraico se dizia Dabar.  Em linhas gerais, os termos coincidem – ambos podem ser traduzidos por discurso. Entretanto, uma diferença fundamental pode ser verificada entre o sentido do discurso grego e o do hebraico. Neste, o discurso referia-se ao diálogo, ou seja, o discurso dialógico. Para o grego, o sentido, dentre tantos outros assumidos por eles, é claro, é o de discurso monológico. Assim, Dussel mostra porque o logos, que deveria fundamentar o diálogo entre os homens, acaba por ser a pedra fundamental de toda ontologia clássica, fechada em si mesma. E diz: “A ontologia termina assim por afirmar que o ser, o divino, o político e o eterno são “uma e a mesma coisa”. Identidade do poder e da dominação, o centro, sobre as colônia de outras culturas, sobre os escravos de outras raças. O centro é; a periferia não é”. (2)

Des-truída, logo, a fundamentação da ontologia clássica, fica evidenciado que todo o sistema vigente até a contemporaneidade será desmontado. Aqui, face à natureza do empreendimento, não nos deteremos nesse minucioso esforço. Contudo, Dussel o faz detalhadamente, lembrando, aqui, o todo de sua obra, percorrendo todas as épocas de nossa sociedade ocidental, apontando em cada uma a sua ligação com o vício primitivo, e, portanto, a necessidade de correção de rota.                        

O segundo aspecto, depois da geopolítica, a ser ressaltado é a proximidade. A proximidade de que fala Dussel não é aquela a que estamos acostumados a pensar. Aproximar-se do amigo é muito simples – estamos contando com a sua amizade. A proximidade a que se refere o autor encerra um doar-se ao Outro, independentemente do que ele possa nos oferecer e, até, da distância física que possa existir.

Dussel apresenta-nos, como podemos observar, uma proximidade originária. No caso do homem, revela-se conforme explica, no mamar. “É a imediatez anterior a toda distância, a toda cultura a todo trabalho; é a imediatez anterior à econômica; é já a erótica, a pedagógica e a política. Todavia, a proximidade do mamar é escatológica; projeta-se no futuro como no passado ancestral; chama como o fim e a origem. Contudo, é somente o começo pessoal, singular, de cada um”. (2)

Esse trecho encerra quatro das principais categorias dusselianas, as quais julgamos extremamente importantes, relativamente bastantes, por ora, para a compreensão da teoria dusseliana e merecedoras da nossa atenção neste momento, ainda que brevemente.

Primeiramente, abordemos a econômica. É a intermediária prático-concreta da relação entre os homens. E esta proposição se confirma pela observação da existência da relação econômica desde os primórdios. O problema, esclarece o autor, está no fato de que, com o desenvolvimento, através dos séculos, o homem perdeu o lugar fundamental nessa relação para o próprio produto.

Assim, vivemos numa sociedade economicizada, em que a produção tem influência tal que delimita toda a realidade, ou quase toda. Mas Dussel adverte para o fato de que, originariamente, o modo de produção não tem esse papel.

Para romper com esse sistema, faz-se necessária a libertação econômica das nações dependentes, que significa, em sua essência, a libertação do homem.         A segunda categoria estampada no excerto retro é a erótica.  Afirma Dussel que o mamar é já uma manifestação erótica. É preciso entender aqui a erótica  como a relação homem-mulher que propicia a fecundidade  ao filho, relação essa que se consubstancia no “fogo que aquece, que protege contra as feras e os elementos, que ilumina o mundo doméstico, que cozinha os alimentos, que dá intimidade. Fogo, madeira, mãe.” (2) A erótica é, por conseguinte, geradora de vida e, vejamos, o mamar reveste-se dessa incumbência, a mãe que dá de sua vida ao seu filho.

Mas a relação erótica homem-mulher, no sentido fundador da vida está contaminada pela ontologia exploradora. É imperioso, conclui Dussel, que se liberte a mulher para romperem-se esses elos de dominação e injustiça.

A terceira categoria é a pedagógica. Essa relação começa em casa, entre pais e filhos e avança para a escola, entre mestres e alunos. Em sua realização encontram-se a política e a erótica.  Os pais ensinam os filhos a obedecerem-lhes (Política); ensinam, pelo próprio comportamento, a exclusão da mulher (erótica). Na escola, os mestres se encarregam de dar os fundamentos dessa relação viciada. Assim expõe Dussel: “O sistema pedagógico erótico ou doméstico educa dentro do ethostradicional do povo, dentro da classe social da família. Tal sistema pode ser patriarcal, onde o varão domina a mulher ... O sistema

pedagógico político ou social educa igualmente dentro do ethos social, mas além disso tem instituições... Estas instituições não são momentos dispersos, mas formam sistemas.” (2)

O rompimento dessa cadeia somente poderá se dar, conforme entende Dussel, pela libertação a partir da consciência crítica do mestre, isto é, do intelectual orgânico que ouve o povo e a ele se integra, na teoria e na prática.

Enfim, a política. Essa categoria está presente em todas as demais relações. É “primeira condicionante condicionada das demais...”. (2) Dussel defende que a manifestação política ocorre desde o mamar, particular, indivíduo até as relações entre Estados e sempre, por conseqüência, dentro de totalidades estruturadas (desde a família até o Estado). É a forma por excelência de dominação do oprimido, do mais fraco, do mais pobre. Desde a família até o Estado. Os pais dominam e exploram os filhos, as classes sócio-econômicas privilegiadas dominam as mais pobres e fracas, o Estados mais ricos e potentes dominam os mais pobres e de menor poder bélico. Mesmo dentro das nações periféricas está impregnada essa corrente. Tudo isso fundamentado, filosoficamente, pela ontologia clássica, totalizadora europeu-norte-americana, além, é claro, da economia, já abordada neste trabalho.

Para por um fim a esse círculo vicioso, Dussel propõe a “libertação das nações periféricas e tomada do poder das classes populares, para organizar realmente a formação social. A filosofia da libertação em seu nível político, deve ter isso bem claro, do contrário se transformaria novamente numa ontologia ideológica, confusa, encobertadora, reformista e pequeno burguesa.”(2)

Acreditamos, assim, ter apresentado um breve painel da teoria de Enrique Dussel, a qual envolve, evidentemente, muitos outros aspectos importantíssimos, mas cujo cerne pensamos possa ser compreendido com essa explanação.

Consoante verificamos desde a primeira parte deste artigo, Hans Küng esteve sempre numa posição ambígua. Por um lado,  desenvolveu praticamente todo seu pensamento dentro da Igreja Católica, inclusive, tendo ocupado altos cargos como teólogo, chegando, mesmo a ser peritus indicado pelo papa João XXIII, advindo, dessa sua influência, uma grande abertura no catolicismo. Por outro lado, mesmo dentro da Igreja, defendendo sempre sua validade, enquanto assembléia, trabalhou incessantemente em busca de fatos que comprovassem a ilegitimidade dos métodos adotados pela Instituição.

Nesse sentido, por sinal, vem-nos à idéia o pensamento de René Descartes, que já no séc. XVII ensinava a necessidade de não se destruir a própria casa enquanto não se tiver uma outra para morar e conseguiu, com essa forma de pensar, cravar suas teorias na história da humanidade, obtendo um título não desprezível – o “pai da modernidade”. Mas também não podemos esquecer dos ensinamentos de Giordano Bruno, que, em plena época das “fogueiras”, recusou-se a renunciar às suas teses e pactuar com uma Igreja ensandecida, alcançando, assim, a morte numa fogueira pública e as referências a seu respeito lembram mais o seu misticismo do que o seu valor como filósofo.

A digressão acima vale para que, situando, pois, Hans Küng, mais ao lado de Descartes do que de Bruno – porquanto se o contrário fosse, certamente não esperaria ser punido pelo Papa e ver cassado o seu direito de lecionar como Teólogo Católico, mas renunciaria muito antes a essa condição – fique desde já evidenciada a diferença entre ele Enrique Dussel, conforme se verá, apesar das aproximações em alguns pontos.

Diante de tudo até aqui exposto, fica evidente que há uma grande aproximação entre Dussel e Küng quanto à natureza dos propósitos. Tanto um como outro criticam o sistema vigente, cada qual em sua esfera de trabalho, com a meticulosa preocupação de se fundamentarem nos fatos históricos. Dussel diz que para fazer filosofia é preciso começar pela história e Küng diria que para fazer teologia também é preciso começar pela história. E aqui mais uma conexão, porquanto ambos procuram tratar a história de um ponto de vista singular, livres das distorções dos vencedores (os que contam a história, oficialmente). Assim, enquanto Küng fala dos fatos abordando aspectos quase que “marginais” da igreja, Dussel preocupa-se em mostrar a história enfocando o sofrimento dos povos periféricos. Nesse caminho, os dois pretendem atingir os pontos fundamentais, o primeiro, da Igreja e o segundo, do Ocidente. Como vimos, Küng questiona a legitimidade do papa e de Roma, além da infalibilidade papal, é claro. Dussel, por sua vez, critica o fundamento originário da sociedade ocidental, o logos grego, a imperialismo do centro europeu-norte-americano, e a validade do sistema capitalista.

No campo das propostas também há uma certa similitude.

Hans Küng afirma que a Igreja deve retomar as suas origens autênticas, ao passo que Dussel propõe o fim da ontologia clássica, assumindo o sentido originário de Logos como abertura, discurso dialógico. Ainda, nesse critério, lembra Küng que voltar às origens significa dar mais importância para mensagem e prática de Jesus, em vez de se continuar nessa pregação regrada e teórica dos catecismos e outros. Se observarmos a tese pedagógica de Dussel, veremos que também ele pretende um sistema em que o mestre seja apenas um condutor e não um inculcador de teorias estranhas à realidade de cada sociedade.

O teólogo propõe a libertação das mulheres para os misteres católicos, isto é, pretende um tratamento igual entre homens e mulheres. Essa é a proposta dusseliana: que homens e mulheres tenham os mesmos direitos na sociedade em que vivem.

A abertura da igreja pregada por Küng pode ser retratada facilmente no discurso de Dussel quanto à necessidade de os pobres, os excluídos serem ouvidos e servidos.

E quanto ao fim do imperialismo romano defendido por Hans Küng, poderíamos traçar um paralelo muito semelhante com a tese defendida por Dussel para o fim do imperialismo europeu-norte-americano.

Como demonstramos acima, os dois autores estão realmente muito próximos. Podemos mesmo afirmar que ambos são libertários. Todavia, há algumas distinções fundamentais, ao nosso ver:

A preocupação central de Hans Küng é a Igreja, ou a igreja. Dela não se afastou e nem pretende. Parece-nos mais preocupado com a salvação da igreja do que com a sociedade como um todo, embora, em alguns momentos faça algumas conexões entre uma e outra.

Enrique Dussel vai muito mais além. A sua leitura é muito mais ampla e sua preocupação envolve a humanidade. Aponta os problemas existentes em todas as esferas fundamentais de uma sociedade, incluindo a religião (embora, neste trabalho, não tenhamos contemplado essa crítica).

Enfim, a partir do estudo das duas obras em tela, podemos ver claramente o quão mais trabalhoso e arriscado é pôr-se contra o sistema sócio-político do que contra um sistema clerical, ao menos em nossos tempos, quando o poder político é desvinculado do poder religioso. Afinal, Dussel propõe uma mudança radical em todo o sistema, enquanto Küng propõe uma mudança apenas na Igreja, ainda, que, tudo indica, acreditando que isso levará às mudanças sociais.

Luiz Meirelles

Mestrando em Filosofia – PUC/SP

BIBLIOGRAFIA

(1)KÜNG, Hans. “A Igreja Católica”. Objetiva, Rio de Janeiro. 2002.

(2)DUSSEL, Enrique Domingo. “Filosofia da Libertação”. Loyola, São Paulo.  

 

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