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Heidegger e a dimensão existencial do corpo humano

Arlindo Antonio do Nascimento Neto

Mestrando em Filosofia – (UFBA)

Licenciado em Filosofia – (UESB)

Introdução

Discussões sobre o corpo são recorrentes na filosofia contemporânea. Filósofos como Merleau-Ponty, Foucault e Deleuze, entre outros, abordaram esse tema de modos diversos, sendo reconhecidos pela sua contribuição ao debate. Entretanto, quando pensamos em um dos maiores nomes da filosofia do século passado, o alemão Martin Heidegger, o mesmo não pode ser afirmado. No presente texto, objetivamos apresentar, de modo sucinto, uma possível contribuição de Heidegger ao debate filosófico contemporâneo sobre a dimensão existencial do corpo humano.Uma primeira ideia geral que é importante fixar é o seguinte: Heidegger busca desconstruir as concepções de homem herdadas da tradição filosófica. Sua postura consiste em recusar as concepções de homem herdadas do pensamento metafísico, tais como foramelaboradas quantoa nossa relação com o mundo.

Heidegger compreende o homem como Dasein– termo alemão formado por dois outros termos: “Da”, que é traduzível como “aí”, e “Sein”, traduzível como “ser”.O Dasein possui uma ligação intrínseca com o mundo.O mundo, por sua vez, constitui o ser do Dasein, o que implica afirmar que o mundo não é algo exterior, mas algo essencial ao ente humano. O homem apenas é/existe em um mundo que se abre e lhe oferece possibilidades; é essa abertura que o filósofo reforça com o sufixo “aí”. Para Heidegger, apenas oDasein existe, uma vez que existir significa doar sentido às coisas. Assim, quando falamos de “existencial” ou “existenciais”, num sentido heideggeriano, nos referimos ao modo de ser desse ente que nós mesmo somos.

Nesse contexto, uma discussão sobre o corpo humano, que parta de uma perspectiva heideggeriana, deve levar em consideração o modo como o filósofo compreende o homem: não como um animal racional–como afirmavam os antigos–, ele também não é um sujeito que objetifica o real–como sustenta os modernos. O homem é um Dasein, um ser-no-mundo.É precisamente por sua compreensão do homem intrinsecamente ligada ao mundo que surge muitas críticas à contribuição de Heidegger para o estudo da dimensão corporal do homem. Sem discutir diretamente o tema, em sua obra capital,Ser e tempo, o autor faz importantes contribuições para teorias sobre nossa corporalidade. Indicar os elementos desta contribuição para o debate é o nosso objetivo no presente texto.

No que segue, apresentaremos as diferentes concepções de corpo que o filósofo cita em sua obra, mostrando que o corpo não é só uma “coisa material”, mas, sobretudo, que o corpo se relaciona com o modo como existimos.Relacionar o corpo, de modo tão decisivo, à existência parece ser a grande contribuição de Heidegger ao debate contemporâneo sobre o tema. Que aspectos desta abordagem difere de outras e podem ser elencados como uma contribuição? É o que queremos apresentar no decorrer do texto.

 

Corpo material e corpo vivido

 

Podemos recorrer a um fato concreto para diferenciar o simples corpo material do corpo vivido e ilustrar a relação existencial que podemos ter com nosso corpo. Uma pessoa que sofre um acidente e perde o movimento das pernas, passa a ter uma nova relação com o mundo. Esta alteração no seu corpo não se manifesta apenas em seu organismo material, mas “molda” a maneira como esta pessoa se vê no mundo, como ela se relaciona com as outras pessoas e os demais entes. Numa linguagem heideggeriana, esse indivíduo “abre” o mundo de modo distinto.

Uma simples leitura da obra de Heidegger revela uma carência de passagens sobre o corpo, em especial em Ser e tempo. Para alguns intérpretes, essa ausência parece “extremamente desconcertante” (CIOCAN, 2008, p. 74), uma vez que o filósofo aborda o tema de modo negativo, afastando o tema do foco de sua investigação sobre o ente humano. Para esses autores, a omissão de uma discussão mais aprofundadasobre o corpo em Heidegger, demonstra uma insuficiência em sua análise do modo de ser do ente humano (CIOCAN, 2008, p. 72-73). Uma vez que o corpo tem como papel mediar “o acesso do Dasein ao mundo e aos outros” (CIOCAN, 2008, p. 73), uma falta desse tema conduziria auma incompletude na análise heideggeriana. Nesse contexto, mesmo que a intenção principal de Heidegger em Ser e tempo tenham sido a de colocar a em evidência a questão do ser – questão que para ele foi esquecida ao longo da história da filosofia –, podemos ignorar o papel desempenhado pelo corpo em nossa relação com o mundo?

Cumpre destacar que em seminários proferidos para psiquiatras, compilados na obra Seminários de Zollikon, Heidegger abordou o tema do corpo. Nesta obra, alerta em tom de defesa, que aquilo que é decisivo é o fato de que, em toda a experiência corporal, o que está sempre em jogo é a constituição fundamental do existir humano como Dasein, como “um âmbito de estar-aberto-no mundo” (HEIDEGGER, 2017, p. 226). Para o filósofo alemão, a análise sobre isso foi feita, já em Ser e tempo, de modo que o importante é considerar que “[...] tudo o que chamamos a nossa corporeidade, até a última fibra muscular e a molécula hormonal mais oculta, faz parte essencialmente do interior do existir” (HEIDEGGER, 2017, p. 226). Como dissemos antes, na filosofia heideggeriana, “existir” é o modo de ser do ente humano, que envolve a doar sentido para os demais entes, algo que somente o Dasein pode realizar.

A discussão sobre corpo deve, nos termos da filosofia de Heidegger, implicar uma revisão da tradição moderna, destacadamente a concepção cartesiana que nos deixou como herança a redução dos entes à condição de objetos passíveis de manipulação e de cálculo. Tendo como cânone a interpretação da natureza em termos de matéria e movimento, conforme aponta Donatelli (1999), Descartes entende o conceito de corpo como “coisa que possui extensão material”, ou seja, como algo que ocupa lugar no espaço. No horizonte desta concepção, o corpo funciona como uma máquina, baseada na articulação entre suas peças, tal como um relógio ou um moinho de vento. Nesta perspectiva, a análise do corpo não escapa de uma tendência do pensamento moderno: a de objetificação da realidade. Na modernidade,as coisas só podem a ser entendidas se puderem serobjetificadas, ou seja, se puderem ser representado por um sujeito pensante.

Pensar a corporeidade humana, numa perspectiva heideggeriana, exige, também, uma diferenciação entre os conceitos de Körper (corpo material) e Leib (corpo vivido). Esta diferenciação articula-se, por sua vez, à concepção de espacialidade do filósofo, como explicaremos adiante. Assim como o Dasein não “tem” um espaço, mas é espacial em sua própria constituição de ser, ele “corpora”, ele existe no modo do corpo. Para Heidegger, nós vivemos na medida em que existimos como corpo, em que “corporamos”. Em passagens da obra heideggeriana vemos acenos ao papel que o corpo exerce na relação que o Dasein estabelece com o mundo – um exemplo disso é a importância paradigmática que o filósofo dá a “mão” –que não é só um órgão tátil, mas que “abre mundo”.

O corporardo corpo (Leib) se difere totalmente daposse da materialidade orgânica do corpo(Körper), sendo esta materialidade o que interessa aos modos de apreensão científico-natural que entendem que portamos corpo do mesmo modo como portamos um martelo à mão. Nesse contexto, para pensarmos a corporeidade humana, não devemos abordá-la exclusivamente à luz de sua materialidade, mas considerando a maneira como ela é vivenciada no existir. Heidegger (2017) afirma que pensar o problema do corpo, implica em renunciar à compreensão do corpo estritamente como corpo material (Körper), pois esta limita o seu caráter existencial. Nesse cenário, se faz necessário uma noção mais ampla, que envolva a dimensão do existir, ou seja, faz-se necessário pensar o corpo como corpo vivido (Leib) – esta expressão reforça a presença de uma dimensão existencial em nosso corpo. A diferenciação possível entrecorpo material e corpo vivido consiste numa maior extensão dos limites do segundo. Esta diferença é de caráter qualitativo e não quantitativo, conforme Aho (2009, p. 37): “o modo corporal de ser é obscurecido por uma aproximação objetiva do corpo pelas ciências naturais”. Em outras palavras, a percepção do corpo em sua materialidade, acaba por nos “ocultar” sua dimensão existencial.

O limite de meu corpo vivido (Leib) não se refere ao simples estar presente de um corpo material (Körper), ao simples estar presente de uma materialidade orgânica, mas ao meu modo de estar relacionado com o mundo. Ilustraremos isso com um exemplo: quando tento consolar uma pessoa querida, abraçando-a, esse abraço não é somente o simples contato de um corpo físico com outro, mas possui todo um sentido de cuidado, de querer bem, ou seja, toda uma dimensão existencial. No abraço, para além do contato material dos corpos, está implicada a totalidade do Dasein, o que inclui a dor, a perda, a consciência da finitude e até a morte. Nesse sentido, como no exemplo da pessoa que perde o movimento das pernas, o corpo está envolvido no modo como “abrimos” o mundo.

Compreender que o corpo possui uma dimensão existencial, ademais de sua dimensão orgânico-material, revela algo sobre a totalidade do existir humano. Para além dos aspectos contidos e das impressões sentidas através do corpo, entendido em sua materialidade, ele é um modo do Dasein ser no mundo. Entendemos que esta dimensão existencial do corpo só pode ser compreendida se buscamos uma noção de homem que vá além da sua redução a uma materialidade orgânica, tarefa que, como apontado, é central para a filosofia heideggeriana. Foi por não levar isso em consideração que alguns intérpretes tiveram dificuldade de notar a contribuição filosófica de Heidegger ao debate sobre o corpo.

 

Corpo e espacialidade

 

É no contexto da investigação sobre a espacialidade do Dasein que o corpo ganha maior destaque na analítica existencial pretendida pelo filósofo. Em Ser e tempo, Heidegger estabelece, de modo sintético, uma relação entre espacialização e corporeidade. Assim, o corpo aparenta estar em uma relação de subordinação com a estrutura da espacialidade, algo que Heidegger (2015, p. 163) deixa em aberto ao afirmar que a “espacialização da presença[Dasein] em ‘corporeidade’ (Leiblichkeit), a qual comporta uma problemática especial que não será tratada [...]”. O Dasein se orienta no mundo ocupando-se. Assim, pensar a espacialidade do Dasein não significa apenas pensá-lo como uma “coisa-eu” dotada de corpo material (Körper) que ocupa um lugar no espaço, pois o Dasein só é como um ser-no-mundo. (Cf. HEIDEGGER, 2015, p.161).

A discussão sobre a espacialidade em Heidegger se insere na crítica que o autor faz à caracterização cartesiana de mundo apenas como espaço físico. O Dasein só é no mundo. O mundo, por sua vez, não é a simples soma dos entes que encontramos nele. Se entendermos que o espaço constitui o mundo, isso implica entender que, consequentemente, as coisas que nele se encontram possuem um carácter espacial. No § 22 de Ser e tempo Heidegger demonstraque a existência é um deslocamento, através do qual o ser do Dasein é lançado para se encontrar num mundo que “se abre” à sua passagem, lhe fornecendo instrumentos, entes disponíveis à mão. Esses utensílios possuem um “lugar para”, uma utilização possível dentro do conjunto de utensílios disponíveis. Esse lugar ocupado por esses entes não é de caráter geométrico ou geográfico, mas é o lugar para onde o Dasein se dirige a fim de encontrá-lo.

A espacialidade do modo de ser do Dasein se difere da espacialidade dos demais entes. ODasein está no mundo de maneira preocupada ou ativa. Ele se orienta no mundo aproximando-se do lugar ocupado por cada utensílio. Esta ocupação é uma supressão da distância, uma tendência essencial do Dasein. Essa atividade essencial do Dasein, de tentar suprimir toda distância que o separa dos outros entes, pode ser observada na criação de invenções como o aparelho de telefone ou no e-mail por exemplo. O Dasein “abre mundo” para se aproximar, para ir em direção a algo. Dizendo “aqui” o Dasein designa aquilo de que está próximo.

É um erro interpretar o Daseincomo um ser localizado num lugar – no sentido de um espaço geográfico – em específico. Nesse sentido, o lugar que o meu corpo ocupa deve ser considerado como meu envolvimento existencial próprio com os entes que estão disponíveis, com as coisas que eu me aproximo em minhas atividades cotidianas. Em outros termos, aquilo que está “próximo” é aquilo que está disponível para uso. Como exemplifica Aho (2009, p. 34), no meu cotidiano, eu já estou familiarizado com o lugar onde as coisas estão: o telefone não está a dois metros, está “ali”. Em consequência disso, me localizo em uma região quando estou ativamente envolvido com coisas acessíveis. O lidar do Dasein com coisas “próximas” ou “distantes” num espaço-vivido permanece constante.

Apesar de o exame sobre o corpo não ganhar contornos maiores em Ser e tempo, o conceito de espaço apresentado na obra auxiliana destruição da interpretação do corpo apenas como corpo material (Körper). Isso porquea espacialidade do Dasein é diferenciada da especialidade conhecida de um modo meramente teórico e científico, como distâncias mensuráveis de forma métrica (CIOCAN, 2001, p. 185-186). Esta concepção faz da extensão a determinação existencial da especialidade. O corpo, como compreendidono pensamento tradicional, é determinado por essa conceituação, que a análise de Ser e tempobusca desconstruir. O que está prefigurado em de Ser e tempo, mais especificamente nos §§ 22-23, afirma Ciocan (2001, p. 187) é a primeira indicação – embora não totalmente desenvolvida – da importância existencial do corpo humano para o ser do Dasein.

Diante do que foi dito antes, fica claro que o ente humano não pode ser entendido como uma massa corpórea que ocupa um lugar no espaço. Por outro lado, se compreendermos o ente humano como Dasein, ou seja, a partir de sua espacialidadeeguiado,nas ocupações concretas e em seu agir cotidiano, através de sua abertura, a existência se torna o lugar de realização do Dasein, o que inclui o corpo e sua espacialidade.Reafirmamos aqui, que esta compreensão envolve assumir o corpo em sua dimensão existencial como chave para entender o relacionamento do Dasein com o mundo.

Assim, o conceito de corpo vivido (Leib) afirmado por Heidegger, nos permite também acessar de modo existencial a espacialidade do ente humano, tendo em conta seu envolvimento engajado com o mundo, algo que uma simples concepção teórico-científica não pode nos proporcionar.O Dasein é espacial em si mesmo, no sentido de uma espacialização de sua corporeidade (Cf. HEIDEGGER, 2017, p. 101). Desta maneira, Heidegger reafirma que o Dasein não é espacial por ser corporal, mas que esta corporeidade só é possível porque o Dasein tem a espacialidade como um constituinte da sua existência. (Cf. HEIDEGGER, 2015, §23 e 24). É por isso que o estar/ser no mundo, não deve ser compreendido no sentido de uma localização espacial em um sistema de coordenadas, mas num sentido existencialde envolvimento.

 

Conclusão

 

Para Heidegger, o ser corporal do ente que nós mesmos somos, se for encarado sob uma perspectiva correta, nunca pode ser tomado como um simples corpo material (Körper). Nosso estado corporal é algo fundamentalmente diferente da constituição física de outros corpos. Ao assumir uma interpretação existencial como ponto de partida, o corpo já não pode ser concebido apenas como um ente material que possui um limite físico. Como foi dito acima, o corpo sempre está orientado em situações concretas em meio a uma totalidade de seres.

Nunca foi pretensão de Heidegger, em Ser e tempo, aprofundar-se no tema da corporeidade humana. Entretanto, ao examinar sua espacialidade do Dasein, Heidegger descreveu as condições de possibilidade para se pensar a corporalidade do ente que nós mesmos somos. Ao citar a diferença entre o corpo material (Körper) e o corpo vivido (Leib), o filósofo não ignora o fato de o corpo humano ser biológico e orgânico, porém, numa perspectiva existencial, estas instâncias se mostram insuficientes para definir a corporeidade do ente humano.

Em síntese esperamos ter deixado claro que, no contexto da filosofia de Heidegger, cujo objetivo é fazer uma crítica à metafísica ocidental, o corpo não pode ser reduzido a uma coisa que ocupa um lugar no espaço. Sua principal contribuição para esse debate pode ser notada na ligação que há entre o corpo e adimensão existencial que é própria do Dasein. Sendo assim, para além da superação da compreensão moderna de corpo, a discussão sobre o tema corrobora com a compreensão do homem enquanto ser-no-mundo.

 

Referências

 

AHO, Kevin. Heidegger’sneglectofthebody. Nova York: Sunypress, 2009.

 

CIOCAN, Cristian. The Question of the Living Body in Heidegger’s Analytic of Dasein.Research in Phenomenology, v. 38, 1, p. 72-89, 2008.

 

______. La vie et la corporalité dans Être et Temps de Martin Heidegger.StudiaPhoenomenoligica, v.1, p.61-93, 2001.

 

DONATELLI, Maria Franco. O estudo da medicina em Descartes.  Revista Ideação, v. 1, n. 4, p. 126-137, 1999.

 

HEIDEGGER, Martin. Nietzsche I. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2007.

 

______. Seminários de Zollikon: protocolos, diálogos, cartas. São Paulo: Escuta, 2017.

 

______.Ser e tempo. Petrópolis: Vozes; Bragança Paulista: Editora Universitária São Francisco, 2015.