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A VERDADE NO PROCESSO PENAL:  A TEORIA FILOSÓFICA DO ESTADO DE COISAS

Rafael Ferreira Vianna - Doutorando em Ciências Jurídico-sociais Universidade de Lisboa/PT

Roderick M. Chisholm (1916-1999) afirma que responder a pergunta “O que é verdade?” é fácil, desde que adotemos o pressuposto metafísico do estado de coisas. Segundo o filósofo, uma crença ou afirmação sempre diz respeito a certo estado de coisas, especificamente se um determinado estado de coisas existe ou não. Assim, uma dada crença será verdadeira desde que um estado de coisas exista, e falsa, caso trate de um estado de coisas que não existe[1].

Para clarear a tese defendida, utilizo um exemplo formulado pelo próprio Chisholm: para que seja verdadeira a afirmação “existem cavalos” é preciso que de fato existam cavalos; e para que seja verdade que “não existem unicórnios” é preciso que não existam unicórnios[2].

Nessa concepção, para que uma crença seja verdadeira, há certas condições de verdade que precisam ser preenchidas, sendo estas distintas dos chamados critérios de evidência[3]. Dada uma proposição qualquer, por exemplo, “João matou Maria”, para que tal assertiva seja verdadeira precisam estar satisfeitas as condições de verdade, que neste caso seriam: a) a vida de Maria ter sido ceifada, ou seja, Maria ter sido morta; e b) João ter realizado a conduta que ocasionou a morte de Maria. Essa verdade independe, portanto, dos critérios de evidência, que são as provas, por assim dizer, de que uma crença é verdadeira. Poderíamos colacionar a esse caso, exemplificativamente, evidências como (i) visualizarmos o corpo sem vida de Maria com perfurações; (ii) João ter sangue nas mãos; (iii) João ter sido visto perto do corpo de Maria, etc. Note-se que podem estar presentes diversos critérios de evidência, o que não implica que a afirmação “João matou Maria” é verdadeira.

Assim, há uma infinidade de estado de coisas, abstratos, e que para que uma proposição seja verdadeira é preciso que o estado de coisas ao qual se refere tenha se realizado no mundo dos fatos. Utilizando o exemplo acima, para que se constate a verdade de “João matou Maria”, o estado de coisas <João ter matado Maria> precisa ter se realizado no mundo dos fatos, senão é um estado de coisas que existe somente no mundo dos possíveis porquanto não se realizou no mundo dos fatos; tornando, assim, falsa a proposição.

Numa situação como esta, há vários estados de coisas possíveis, como, por exemplo, <João ter visto Maria se matar>; <João ter ajudado Maria a se matar>; <João não ter matado a Maria>, de modo que a verdade no mundo dos fatos depende exclusivamente de a proposição condizer com o estado de coisas que se realizou, independente dos critérios de evidência que se apresentam, ainda que possam coincidir.

Correlacionando a construção filosófica do pressuposto metafísico do estado de coisas como instrumento de verificação da verdade com o processo penal e os requisitos necessários para se condenar alguém ante a constatação de critérios de evidência em um fato criminoso (ou aparentemente criminoso), conclui-se que o direito processual penal, ao contrário do discurso dominante na jurisprudência e na doutrina jurídica especializada[4], abre mão da verdade para aceitar uma condenação baseada unicamente em critérios de evidência.

Em outras palavras, o processo penal se sustenta tão somente na verificação de critérios de evidência suficientes para o convencimento da comunidade jurídica de que alguém cometeu um crime e merece ser responsabilizado penalmente, pouco importando a verdade em si.

Obviamente que em alguns casos, talvez até na maioria, os critérios de evidência coincidem com as condições de verdade, não existindo maiores problemas com a afirmação da verdade do processo penal. No entanto, o processo penal prescinde de tal coincidência para se legitimar, utilizando uma lógica que desconsidera as condições de verdade.

Assim, chega-se à constatação de que o Direito acaba justificando condenações injustas uma vez que afirma como verdade a ocorrência de um fato, bem como de sua autoria, bastando para tanto que estejam preenchidos critérios de evidência suficientes para o convencimento do Julgador.

É possível, portanto, afirmar que no processo penal basta que uma crença seja justificável para que um fato seja considerado existente e/ou conhecido, prescindindo-se da verdade propriamente dita para que seja afirmada como tal, isto é, pouco importando se o fato ocorreu ou não.

Tomando como exemplo um caso criminal em que Maria tivesse sido morta com uma perfuração no crânio oriundo de um projétil de uma arma de fogo encontrada ao lado de seu corpo, haveria diversos estados de coisa que deveriam ser considerados para se realizar uma investigação criminal satisfatória no caso.

O trabalho de investigação da polícia baseia-se exatamente em levantar as diversas hipóteses ou possibilidades (mundo dos possíveis) para o caso, como, por exemplo: a) Maria ter cometido o suicídio com aquela arma encontrada ao lado do seu corpo; b) João ter matado Maria com aquela arma e a ter abandonado ao lado do corpo; c) uma terceira pessoa ter matado Maria com aquela arma e a deixado ao lado do corpo; d) Maria ter sido morta com o disparo de outra arma, por João ou um terceiro, sendo aquela arma encontrada ao lado do corpo a que tentou utilizar para se defender. Ou seja, cabe à polícia investigativa considerar todos estados de coisas possíveis cujo resultado seria o que ocorreu no mundo real.

A partir das diversas possibilidades de como um crime pode ter ocorrido, ou dos estados de coisas possíveis, a polícia judiciária começa a buscar critérios de evidência que se apresentam, concentrando esforços na verificação daqueles que se apresentarem mais plausíveis ou evidentes.

Consideremos que, no caso hipotético acima, (i) João foi visto discutindo com Maria pouco antes do disparo que a matou, (ii) João foi encontrado logo após o ocorrido com as roupas cheias de sangue, (iii) existiam impressões digitais de João na arma encontrada ao lado do corpo de Maria e (iv) que o projétil que vitimou Maria partiu dessa arma.

Neste caso, o preenchimento de diversos critérios de evidência leva a crer que o estado de coisas <João matou Maria> se realizou no mundo dos fatos, de modo que para o processo penal haveria indícios suficientes da existência/materialidade de um crime e de sua autoria, o que ocasionaria a acusação por parte do Ministério Público e o desenrolar de um processo criminal contra João.

Supondo que no exemplo supramencionado os fatos ocorreram sem qualquer conduta criminosa de João - tais como: (i) João e Maria discutiram, (ii) Maria em um ato desesperado sacou a arma e atirou contra a própria cabeça, (iii) João, que se encontrava ao seu lado se apavorou, abraçou Maria e sujou sua roupa de sangue, (iv) João pegou a arma das mãos de Maria, (v) João deixou a arma ao lado do corpo de Maria e (vi) João saiu correndo por não saber o que fazer - concluímos que diversos estados de coisas se realizaram sucessivamente, mas o estado de coisas <João matou Maria> não se realizou, de modo que a proposição “João matou Maria”, neste caso, é falsa.

Diante da constatação de critérios de evidência que sustentem a crença na veracidade da proposição “João matou Maria”, durante o processo penal João tentará provar que Maria cometeu suicídio e que as condições de verdade não coincidem com os critérios de evidência colacionados pela acusação.

Contudo, apesar de a proposição que baseia toda a acusação e, por consequência, o processo penal ser falsa, importarão, normalmente, para o julgador somente os critérios de evidência trazidos ao processo, pouco importando as condições de verdade sustentadas pela defesa.

Repise-se que o que se argumenta é que há uma desnecessidade no processo penal dos critérios de evidência coincidirem com as condições de verdade; e não que essa coincidência jamais ocorria ou não ocorreria até com certa frequência.

É importante ressaltar que, nesse caso hipotético, a condenação de João seria baseada em uma crença falsa porquanto os critérios de evidência levam o julgador a crer na realização de um estado de coisas que não se realizou, ou seja, trata-se de um caso onde os critérios de evidência não coincidem com as condições de verdade. Assim, se o estado de coisas <João matou Maria> tivesse se realizado no mundo dos fatos, sendo os mesmos critérios de evidência acima descritos, haveria uma coincidência entre aquilo que os critérios de evidência levam a crer e o estado de coisas que se realizou, ou as suas condições de verdade, pelo que a condenação de João seria baseada em uma crença verdadeira. Contudo, ambas seriam decisões legítimas e corretas para o processo penal, pois fundamentadas em critérios de evidência trazidos no processo.

Em outras palavras, para o processo penal, portanto, para existir uma condenação correta e justa[5] basta que ela seja justificável, isto é, que existam critérios de evidência que apontem que determinado estado de coisas se realizou, pouco importando as condições de verdade de sua realização. A consequência jurídica e imediata é a imposição ao réu, mesmo ao inocente, de uma pena legítima e de acordo com o Direito, que independe da verdade.

Observe-se, novamente, que a verdade de um fato depende da sua realização no mundo real, isto é, precisam estar preenchidas as condições de verdade da realização do um estado de coisas que este fato representa, não bastando que haja critérios de evidência que apontem sua realização, em que pese, como já afirmado antes, possam coincidir.

A teoria do estado de coisas consegue responder, realmente, à pergunta do que é verdade. Adotar esse pressuposto metafísico permite de fato constatar a verdade de qualquer proposição, bastando analisar o estado de coisas a que se refere. Primeiro analisando se é um estado de coisas possível, ou se só existe no plano da linguagem (estado de coisas não realizável); e, sendo possível, se ele se realizou, pelo preenchimento das condições de verdade necessárias e que são independentes dos critérios de evidência apontados.

No entanto, o processo penal toma o evidente como certo[6], tentando transformar o fato aparente em uma verdade processual que justifica uma condenação. Ao colocar - e aceitar como suficiente, ainda que um outro artigo se mostre necessário para discutir como poderia ser diferente na prática - o invólucro da verdade naquilo que os critérios de evidência apontam, o processo penal prescinde das condições de verdade e da verdade propriamente dita.

O processo penal, ao ser pensando em uma base que possibilita a condenação justificável e legítima a partir da adoção como “verdade” de uma proposição falsa (um fato descrito por esta proposição), não pode granjear para si uma posição de busca da verdade ou do preenchimento das condições de verdade, a não ser em uma base ficcionalista[7].

Em suma, o Direito, ao menos no campo do processo penal, não pode utilizar o termo verdade de forma filosófica e com rigor conceitual, pois nem sempre os critérios de evidência colacionados que baseiam uma condenação criminal coincidem com as condições de verdade a serem preenchidas, de modo que em muitos casos pode haver uma contradição metafísica ao se considerar verdadeira uma proposição falsa, gerando, neste caso, decisões corretas baseadas em crenças falsas.

REFERÊNCIAS

CHISHOLM, Roderick M. Teoria do Conhecimento. Trad. Álvaro Cabral. Rio de Janeiro: Zahar Editores, 1969.

VIANNA, Rafael Ferreira. Sobre crime, processo, pena e desculpa: ensaios reunidos. Curitiba: Blanche, 2013.

 Notas

[1] CHISHOLM, Roderick M. Teoria do Conhecimento. Trad. Álvaro Cabral. Rio de Janeiro: Zahar Editores, 1969, pp. 136 e ss.

[2] Ibid. p. 138.

[3] CHISHOLM, Roderick M. Teoria… Op. Cit., p. 146.

[4]VIANNA, Rafael Ferreira. Sobre crime, processo, pena e desculpa: ensaios reunidos. Curitiba: Blanche, 2013, pp. 104 e ss.

[5] Utilizo o termo no sentido de decisão acertada e válida em um ordenamento jurídico constitucional plural e garantidor dos direitos fundamentais do indivíduo.

[6] Utilizo os termos em referência aos níveis do conhecimento propostos por Chisholm: i) aceitável; ii) possível; iii) evidente; iv) certo.

[7] Aqui se faz referência ao ficcionalismo (“como se”) de Hans Vaihinger (1852-1933).