O progresso moral e a educação em Kant1
Atualmente a idéia de progresso moral tornou-se um dos aspectos fundamentais para a compreensão da Filosofia prática de Kant. O entendimento de que a humanidade evolui no sentido moral para o bem, implica na solução de três problemas básicos: primeiro deve-se levar em consideração a teoria do mal radical, formulada pelo próprio Kant em sua Filosofia moral. Segundo é imprescindível considerar o antagonismo da sociabilidade insociável do homem em sua convivência na sociedade, em que ele é sociável e insociável ao mesmo tempo. Deve-se levar em conta que, o homem, ao mesmo tempo em que possui uma tendência de se associar com os demais, sente-se uma forte inclinação para o isolamento. Terceiro, que o gênero humano deve conquistar a paz entre todos os povos e para sempre. Este é o desafio e, ao mesmo tempo, o compromisso que temos uns com outros de lutar pela paz. No entanto, percebe-se que os povos caminham no sentido contrário, em que presenciamos a guerra, a violência e a miséria por toda parte.
Tendo como parâmetro os problemas acima, estabelecemos duas questões importantes: 1) Como é possível pensar em um progresso moral de toda a humanidade, sabendo que o homem carrega em sua natureza a propensão para o mal, a inclinação para o isolamento e o forte desejo pela conquista do poder, gerando com isso a guerra e a miséria? 2) Qual a contribuição da educação, no sentido de reverter estes problemas, e que tipo de conexão pode haver entre o progresso moral e a educação? Tentaremos respondê-las utilizando-se da argumentação kantiana sobre o progresso moral e a sua proposta pedagógica.
Kant foi o grande representante do iluminismo do século XVIII que defendeu a teoria da ilustração. Segundo ele, a ilustração é o esclarecimento de um público, caracterizado como o momento mais importante da civilização humana em geral. A fase da ilustração ou do esclarecimento corresponde à fase de maturidade de todo ser humano. Kant dizia que a sua época ainda não tinha alcançado a fase madura, mas que estava caminhando para isso. Uma pessoa é considerada esclarecida quando se sente na capacidade de pensar por si mesma sem a ajuda de outrem. Esta concepção é compatível com o pensamento kantiano que afirma que o mais importante não é aprender Filosofia, mas filosofar. É este o papel preponderante da educação, principalmente no aspecto moral, de tornar todo um público esclarecido e que este consiga pelo seu próprio esforço a filosofar.
Percebemos que está implícito nesta forma de pensar kantiano o despertar do senso crítico. O próprio filósofo se preocupou na sua fase madura de trabalhar numa linha filosófica que levasse mais em consideração a própria crítica. Boa parte dos historiadores de Filosofia considera que a partir dos anos oitenta e noventa Kant funda o criticismo. É neste período que são publicadas suas três grandes obras: Crítica da Razão Pura (1781), Crítica da Razão Prática (1788) e Crítica do Juízo (1790). No entanto, algumas obras menores, serviram de complemento ao grande edifício do criticismo. Classificamos algumas: Idéia de uma história universal de um ponto de vista cosmopolita (1784); Resposta à pergunta: Que é o iluminismo?(1784); Notas sobre a filosofia da história de Herder (1785); Fundamentação da metafísica dos costumes (1785); Crítica da faculdade do juízo (1790); Sobre o mal radical na natureza humana (1792); A religião nos limites da simples razão (1793); Sobre a expressão corrente: Isto pode ser correto na teoria, mas nada vale na prática (1793); A paz perpétua (1795); Anúncio da próxima celebração de um tratado de paz em filosofia (1797); Primeiros fundamentos metafísicos da doutrina do direito(1797); Antropologia (1798); Conflito das faculdades (1798); Sobre a educação (1802).
Conforme dissemos no início, o nosso trabalho vem situado sob a ótica de três problemas básicos, em que o primeiro trata da teoria do mal radical. Esta teoria parte do princípio de que o homem possui uma propensão natural para o mal e que esta propensão se encontra enraizado em sua natureza de forma inata ou originária.² Este é o maior empecilho de o homem progredir de um estado pior em que se encontra no momento, para um estado melhor no futuro. Neste sentido, o filósofo alemão trabalha na perspectiva da possibilidade, mas que ao mesmo tempo exige uma responsabilidade de todo o gênero humano de querer assumir para si o bem moral. Assim, é necessário um esforço de toda a espécie humana de querer se aperfeiçoar cada vez mais para o bem. Mas é importante destacar também que no campo do dever, há uma responsabilidade que está implícita em mim, de contribuir com as minhas ações para o progresso moral da humanidade. É um sentimento moral governado pela razão. Devo entender que as minhas ações individuais têm que estar em conexão com o coletivo de todos os seres humanos, visto que faço parte de um todo que é a humanidade. Mas é necessário que o sujeito se compreenda como um ser livre, pois a liberdade constitui como o fundamento da prática e do sistema crítico kantiano.
A liberdade em Kant é o conceito-chave da prática, porque sem ela não existe ação. Para o filósofo, toda ação deve ser regida pela razão, fonte mediante a qual o ser humano procede conscientemente e estabelece regras de conduta. Nesse sentido, toda pessoa deve se propor para si fins subjetivos ou particulares, que são as máximas de suas ações. Assim, quando alguém decide estudar para um concurso e, para isso, se propõe a levantar de madrugada todos os dias para estudar, eis que esta decisão necessita para si da máxima “levantar de madrugada”, a fim que ele passe no concurso. A lei em Kant é uma regra de ação que possui o caráter objetivo, enquanto que a máxima possui o caráter subjetivo. O filósofo alemão distingue dois tipos de leis: a lei prática e a lei natural. A lei natural é heterônoma e determinista. Já a lei prática é livre e autônoma. Kant se dedicou na definição da lei prática como instrumento importante da lei moral. A lei prática é aquela que irá estabelecer a autonomia da vontade, que significa a autodeterminação racional. Esta é vista como a capacidade do ser humano de tomar decisões firmes e seguras, que só acontece quando o homem tiver passado pela fase do esclarecimento, ou seja, ter atingido a fase madura.
No campo da possibilidade de um progresso moral para o bem, Kant afirma que mesmo o homem possuindo a inclinação para o mal é possível uma conversão para o bem, visto que a natureza lhe propiciou uma disposição para tal.³ E é esta possibilidade que permite ao homem de tomar consciência da maldade que lhe aflige, para enfim enveredar pelo caminho do bem do ponto de vista moral.
No segundo problema tem-se a tese do antagonismo da sociabilidade insociável da natureza humana. Esta tese vem escrita na obra Idéia de uma história universal de um ponto de vista cosmopolita. Nela está contida a idéia de que o homem, ao mesmo tempo em que procura se associar com os demais, sente-se uma forte inclinação para o isolamento. O filósofo afirma que todo homem possui uma destinação natural que consiste em “formar uma sociedade com os outros e nessa sociedade se cultivar, se civilizar e se moralizar pela arte e pela ciência; tão forte que seja sua tendência animal a abandonar-se passivamente aos atrativos do conforto e bem-estar, que ele chama de felicidade, sua razão destina-o ao contrário a tornar-se digno da humanidade no ativo combate contra os obstáculos que opõem à rudeza de sua natureza.”4
Percebe-se nesta citação que o destino humano é de formar uma sociedade com outros para se civilizar e se moralizar. Em alguns momentos Kant chega a dizer que a razão exige que o homem deixe o estado de natureza e se fixe no estado civil. Nesta perspectiva, faz parte da essência humana deixar o isolamento para se associar com os demais. O homem deve seguir o exemplo das árvores da floresta que, rebatendo contra seus vizinhos para alcançar o ar e a luz do sol, exibem uma exuberância sem igual.5 Nos agrupamentos humanos também acontecem as disputas e todo tipo de intriga, por isso Kant coloca a importância da sociedade civil, mas que a força do direito tenha prioridade. Em Kant, o estado social assume um sentido positivo, porque nele os homens encontram, por meio de leis coercitivas, a liberdade e a segurança.
O terceiro problema nos aponta para um dos principais pilares da tese kantiana sobre a paz perpétua. A luta pela paz é necessária justamente por causa da existência da guerra. Esta, na concepção do nosso filósofo, possui uma similaridade com o mal radical. Ou seja, a guerra é uma realidade existente em nosso meio desde os primórdios da existência humana. O estado de natureza também é visto por Kant como um estado de guerra, mas não efetivo como previu Hobbes: “Da mesma maneira que Housseau, Kant parte de uma hipótese oposta ou pelo menos afastada da idéia de uma guerra efetiva, mas faz da idéia de ‘maldade natural’ e da guerra uma condição dialética da história das sociedades humanas”.6 Com o objetivo de superar o estado de guerra, Kant propõe duas fórmulas básicas: primeiro, a formulação de uma constituição civil em cada Estado; segundo, o estabelecimento de um estado jurídico universal, numa espécie de Confederação dos povos, cuja intenção é a união de todos os povos em vista da paz universal.
Após considerarmos os problemas acima, nos colocamos diante da idéia do progresso moral. É necessário levar em conta que, de acordo com Kant, a humanidade se encontra em constante progresso, mas de forma relativa. Quer dizer, o filósofo alemão não trabalha sob o ponto de vista determinista da história. Ele se engaja no campo de uma hipótese, mas que é relativa. Em torno desta hipótese, há uma explicitação do seu projeto de vida para o homem, em que ele deve sempre buscar o que é melhor para a sua espécie. Neste sentido, o homem, mesmo se vendo como um ser individual, não deve enxergar apenas a si mesmo como um ser isolado no mundo, mas sempre compreender que ele é parte de um todo. E este todo é a sua espécie que compõe toda a humanidade. Com isso, o homem deve se sentir como parte integrante da humanidade, para que seja considerado como homem.
Percebe-se, portanto, que a idéia de progresso moral não fica apenas no campo das idéias de forma abstrata. Ela possui um sentido prático que leva em consideração as ações humanas. Neste sentido, Kant procura na história o quadro evolutivo do gênero humano no aspecto moral. Mas este quadro evolutivo não suscita apenas os momentos de vanglórias dos homens em geral, mas também e principalmente os momentos de inglórias. O filósofo alemão constatou que a história humana até o momento foi a história da maldade e não do bem. É neste sentido que o mal radical é identificado como aquele que se encontra enraizado na natureza humana. Com isso, o progresso moral da espécie humana torna-se um projeto que deve ser construído constantemente para o futuro. É por esta razão que Kant pensa num progresso moral que, mesmo que seja em alguns momentos interrompido, mas jamais cessará.
Neste momento entra o papel preponderante da educação como um instrumento que possibilita o alcance da finalidade última do gênero humano, que é progredir e se aperfeiçoar cada vez mais no sentido moral. A pedagogia de Kant, apesar de não ser considerada um tratado sobre a educação, possui um sentido antropológico e moral bastante rico em sua Filosofia. Por que não dizer que possui um sentido para a educação atual? Claro que sim, sem dizer que a maior parte da vida acadêmica de Kant foi dedicada a atividade como professor de Filosofia da Universidade de Königsberg. Outra atividade ele dedicou com enorme afinidade aos escritos de suas obras. Temos assim a caricatura de um pensador que, mesmo não tendo grande interesse pelos tratados educacionais, exibe em sua prática de trabalho um exemplo brilhante de educador e de intelectual acadêmico. Philonenko faz suas considerações sobre Kant educador afirmando o seguinte: “Kant foi um pedagogo durante toda a sua carreira”.7
Aparecido de Assis
Mestre em Filosofia pela PUC – SP
Professor de Filosofia da UNEMAT
Notas
1 Este artigo é uma pequena parte de um trabalho maior que apresentei como dissertação de mestrado na PUC – SP em setembro de 2001. A dissertação tem como título O Progresso Moral e a Educação em Kant.
2 JÚNIOR, Oswaldo G. “Reflexões sobre a noção de mal radical”. Studia Kantiana. São Paulo, 1(1): 83-202, 1998, p. 183.
3 FILHO, Edgar J. J. “O mal radical e a possibilidade da conversão ao bem”. Studia Kantiana. São Paulo, 2(1): 87-104, 2000.
4 KANT, Anthropologie du point de vue pragmatique, Trad. Francesa par Michel Foucoult, Paris, 1964, p. 184.
5 KANT, Idéia de uma história universal de um ponto de vista cosmopolita, trad. brasileira de Ricardo Terra e R. S. P. Naves, Brasiliense, 1986, 5ª prop., p. 15.
6 VLACHOS, G. La pensée politique de Kant: Métaphysique de l´ordre et dialectique du progrés. 2 vol. Paris, PUF, 1962, p. 303.
7 PHILONENKO, Aléxis. L´oeuvre de Kant. 2 vol. Paris, Vrin, p. 10.