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Platão & Jung - Vocação - educação - cidadania

Este artigo apresenta uma breve reflexão comparativa entre os tipos de caráter apresentados na obra platônica e na tipologia junguiana. Para tanto, faz-se necessário inicialmente formular um descritivo de ambos os sistemas, com os seus respectivos fundamentos, a fim de que se possa estabelecer paralelos entre as duas teorias, com seus pontos de convergência e, evidentemente, com os de divergência.

 

Como se verá, os objetivos de cada um desses pensadores foram diferentes. Platão tinha em mente a aplicação das diferenças individuais na construção da polis, isto é, como a sociedade poderia ser estruturada de forma satisfatória, se cada um de seus membros estivesse em concordância com o seu próprio tipo. Já Jung percebe que há nítidas diferenças pessoais, as quais foram observadas, inicialmente, quando ele estava em contato com Freud e Adler. Quais as razões que fazem com que as pessoas sejam diferentes entre si? Essa foi a sua pergunta inicial. Cada um desses pensadores, não obstante seus objetivos diferentes, contribuíram e contribuem para a construção do ser humano, enquanto indivíduo e também enquanto parte integrante da sociedade. Tais contribuições podem ser aproveitadas e amplamente utilizadas em temas  como, por exemplo, os propostos neste artigo: vocação, educação e cidadania.

Platão

Este pensador busca no mito uma explicação racional para a criação do cosmos e do ser humano. Em seu Diálogo Timeu ele apresenta como o cosmos foi criado, a respectiva ordem do mundo e a sua relação do com o homem. Segundo o mito, o cosmos teria sido criado por um Demiurgo, que havia contemplado as idéias eternas* e, nessa contemplação, depreendeu suas leis e sua complexidade orgânica. Portanto, o cosmos é uma entidade viva e racional, sendo constituído por corpo e alma, em uma eterna ligação indissolúvel. Apenas à guisa de ilustração, o cosmos é dirigido parcialmente pelo Demiurgo e parcialmente por ele próprio, considerando a sua racionalidade.

 

Prossegue no Timeu mostrando a semelhança entre o cosmos (vivo e racional) e o homem (também vivo e racional), apenas que, diferentemente do cosmos, a ligação entre alma e corpo no homem não se dá de forma indissolúvel, mas de forma transitória, pois quando advém a morte, a alma se separa do corpo indo para o Hades (mundo dos mortos).

Na seqüência do Timeu verifica-se que a alma concedida ao homem é tripartida, pois ela tem um aspecto imortal e outro mortal. Há uma justificativa para isso, pois a alma humana teria sido construída pelo Demiurgo a partir do material que sobrou da construção do mundo. A primeira, a alma imortal é também chamada de racional, e aloja-se na cabeça do homem. A segunda – a mortal - por sua vez, é dividida em duas partes: (1) irascível está alojada no tórax e refere-se à coragem e à cólera; (2) concupiscente (ou apetitiva) situa-se na região do abdômen junto à linha do umbigo e refere-se à dor, aos desejos, ao prazer, etc.

Dessa forma, o ser humano ao nascer traz consigo uma alma específica, que poderá ser uma das três acima descritas. Essa alma irá direcioná-lo para a sua atividade em sociedade, a fim de que esta funcione harmoniosamente, conforme apresentado no Diálogo República. Por exemplo, se a sua alma for irascível, necessariamente ele deverá ser um guerreiro. Para melhor elucidação, o quadro a seguir mostra as “três almas” e as suas respectivas características tipológicas:

 

  Alma racional

             Filósofo

          Dianoia

  Alma irascível

            Guerreiro

            Pistis

  Alma concupiscente

Artesão/Produtor     

           Eikasia

Mas, aqui, dentro do âmbito da tipologia, há o acréscimo de mais um elemento: o pensamento intuitivo (noesis). Comentamos em nota anterior, que a alma antes de encarnar neste mundo  contempla “as idéias perfeitas” em um mundo extrafísico. Ora, Platão vale-se da tradição órfico-pitagórica para fundamentar a sua teoria e essa tradição prevê a metempsicose (sucessivas encarnações da alma), que objetiva o seu desenvolvimento. Assim, a  alma parte do estágio mais baixo, (1) o das impressões sensíveis (eikasia – produtor); em seguida para o estágio que lhe é mais próximo, (2) o das opiniões estabelecidas (pistis – guerreiro), rumando em direção ao (3) pensamento discursivo (dianoia – filósofo), para finalmente chegar à iluminação pelo (4) pensamento intuitivo (noesis – contemplação direta das idéias perfeitas). Com relação a este último tipo apresentado, ressalta-se que este também, a exemplo do tipo dianoético, está inserido no âmbito da alma racional (imortal), porém em grau mais elevado, não obstante poder estar vivendo ainda neste mundo sublunar, todavia em um estado de plena sabedoria.

Em contrapartida, segundo o próprio Platão e o pensamento comum entre os cidadãos gregos, na escala social o mais baixo padrão tipológico é o do artesão/produtor, tendo em vista o desprezo pelos trabalhos manuais em função do enaltecimento da sabedoria.

Dessa forma, fica assim a disposição dos tipos, partindo do mais alto para o mais baixo:

 

    (1) Noético

(2) Dianoético 

     (3)  Pístico

     (4)  Icônico

     (idealista)

       (racional)

     (guardião)

       (artesão)

Não obstante esta divisão da sociedade em rígidas classes sociais, o que de certa forma se apresenta muito elitista, depreendem-se três elementos:

.(1). – a ascensão gradual da alma em direção ao tipo dianoético;

.(2). – a possibilidade de um processo educacional adequado aflorar convenientemente a aptidão inata de cada um, segundo o seu tipo e

.(3). – a exemplo da referência anterior, esse mesmo processo educacional poderá elevar o indivíduo de um patamar para outro, pois, conforme o próprio Platão, “até um escravo pode aprender a desenvolver um teorema”.

Dessa forma, dentro da proposta desta reflexão, o pensamento platônico nos aponta que há (a) uma vocação inerente em cada ser humano: (b) esta vocação é passível de ser desenvolvida e exercida mediante a educação e (c) o exercício das aptidões pessoais leva à construção de uma sociedade saudável, a qual permitirá o bom exercício da cidadania com o usufruto de todos os seus direitos e a consciência de seus deveres.

 

Jung

         Este pensador suíço procedeu a um longo estudo sobre os tipos psíquicos abordados na literatura, na mitologia, na estética, na filosofia e na psicopatologia; estudos esses elaborados a partir de sua indagação pessoal acerca das diferenças existentes entre os seres humanos. Diante de situações semelhantes as pessoas reagiam de forma diversificada. Nessa sua busca é que foi elaborada a teoria dos tipos psicológicos.

O primeiro passo para a identificação da tipologia pessoal de cada um é perceber para onde a atenção do indivíduo se volta – se para si mesmo ou se para o outro – a partir dos conceitos de subjetivo e objetivo. A isto, Jung chamou de atitudes, que são denominadas introversão e extroversão.

A primeira classificação relativa à extroversão e introversão ainda era insuficiente para a caracterização de todos os tipos psicológicos, fazia-se necessária uma ampliação e um aprofundamento; assim, num segundo momento, Jung vai definir as funções, que estabelecem novos diferenciais, que são as funções psicológicas e, por conseguinte, ampliam o horizonte de compreensão do universo humano. Eis as funções:

 

 (1) Pensamento

(2) Sentimento

   (3)  Sensação

    (4)  Intuição

 

Portanto, além da noção inicial sobre extroversão e introversão, encontra-se nas funções a atuação da energia psíquica que é para onde o sujeito direciona sua atenção e o seu modo de atuação. Pode-se dizer que uma função pode ser observada pela quantidade de energia  direcionada para ela. A seguir, um breve histórico de cada uma das funções:

  1. – Pensamento: É uma função intelectual que procura compreender as coisas.
  2. – Sentimento:  É uma função avaliadora, segundo o que é agradável ou não.
  3. – Sensação:    É uma função de percepção sensorial.
  4. – Intuição: É uma função dada de imediato, sem a participação do pensamento  ou  sentimento.                                                    

A junção entre as atitudes e as funções vai determinar a tipologia, conforme demonstrado no quadro abaixo:             

 

Pensamento introvertido

Pensamento extrovertido

        Sentimento introvertido

        Sentimento extrovertido

         Sensação introvertido

         Sensação extrovertido

         Intuição introvertido

          Intuição extrovertido

Mas, a teoria junguiana não pára nesses oito tipos, como únicos em cada ser humano, considerando que todos têm as quatro funções, apenas em graus diferenciados, segundo a energia psíquica dirigida a cada uma das funções.

De forma resumida, dizemos que a pessoa possui uma função principal, que é a determinante em seu modo de agir (quer seja introvertido, quer seja extrovertido). Há uma função auxiliar, que, como o próprio nome diz, auxilia a função principal, sem lhe fazer oposição. Tanto a função principal como a função auxiliar têm a sua contraparte no inconsciente. Por exemplo, se a pessoa tem como função principal a intuição, terá no inconsciente a função sensação. Se a sua função auxiliar for o pensamento, a respectiva função oposta será o sentimento.

O que se depreende deste brevíssimo esboço da teoria tipológica de Jung, é a sua enorme abrangência, rica em detalhes, que abarca um grande número de possibilidades de considerações acerca da natureza intrínseca do homem. Trata-se de um sistema que se destaca entre os demais,  como por exemplo, a tipologia de Galeno, a de Pavlov, a de Wundt e a de Reich. Esses sistemas são genéricos demais e supõem que os tipos são puros e nunca mesclados com outros tipos, o que denota rigidez na classificação e a na sua aplicação prática. Já a teoria junguiana apresenta um detalhamento minucioso e mais preciso.

Outro ponto muito importante a ser destacado é o processo de individuação preconizado por Jung (talvez um de seus principais conceitos), em estreita relação com a tipologia. Tal processo se dá com o desenvolvimento da  pessoa ao longo de sua vida, permitindo entrar em contato com os  lados menos desenvolvidos de sua personalidade (função inferior e auxiliar). Isto gera a sua integração, possibilitando, então, que ela se complete como pessoa.

Há que se ressaltar também o fato  de que a teoria tipológica junguiana não privilegia uma função em detrimento de outra, ou seja, não há funções que possam ser consideradas melhores, enquanto outras são piores. Portanto, não há, segundo esse sistema, a alegação de que, alguém, por ser portador de uma determinada função, é superior ou inferior a outro. Nesse ponto há, então, igualdade. A sistematização dos tipos tem por finalidade a compreensão das variedades individuais.

Tais variedades, evidentemente, têm que ser respeitadas, não obstante haver necessidade de equilíbrio entre as funções, pois quando alguém vive de forma unilateral em excesso, a função principal retira muita energia psíquica da função inferior e esta cai no inconsciente, tornando-se primitiva e perturbada, trazendo o desequilíbrio e a neurose.

Platão e Jung: convergências

O sistema platônico e o junguiano apresentam um ponto bastante comum que é o quaternário das funções, estando em até certo ponto em concordância, conforme quadro a seguir:

 

     PLATÃO

     Noético

 

Dianoético

  

Pístico

 

Icônico

JUNG

  Intuição

Pensamento

 Sentimento

 Sensação

 

Platão apresenta a sua teoria tendo por finalidade última a aplicação da tipologia dentro do contexto da polis (sociedade), ou seja, cada indivíduo (ou grupos de indivíduos) segundo seus respectivos traços de caráter. Assim, de acordo com a natureza intrínseca de cada um, o seu desempenho dentro do grupo social terá um melhor aproveitamento. O todo (polis) é formado por partes vivas, que têm características diferentes.

Jung, por seu turno, mostra o seu sistema  tipológico, esclarecendo a necessidade da compreensão das variedades individuais. Portanto a tipologia representa um auxílio para a compreensão dessas diferenças.

Com relação a este ponto, há similaridade entre um e outro pensador, pois se, no âmbito social, cada um puder desempenhar sua atuação em conformidade com a sua própria natureza interior, haverá um duplo benefício, tanto para aquele que se sente compreendido em seu caráter subjacente, como para aqueles de sua convivência.

Além dos dois pontos acima citados e finalidades das tipologias, há um outro ponto comum entre os dois pensadores: a individuação (termo junguiano).

Platão fala da ascensão da alma em direção ao mundo das idéias perfeitas, que pode ser iniciado inclusive neste plano sublunar; enquanto Jung fala no processo de individuação. Não obstante parecerem coisas diferentes, principalmente como cada um deles apresenta esse conceito, há um ponto de similaridade que é o desenvolvimento pessoal e individual. Cada um deles, à sua maneira (inclusive separados temporalmente por mais de dois milênios), mostra a necessidade humana natural de desenvolver-se e completar-se. Portanto, o quaternário comum a ambos, contendo as mesmas funções, a aplicação prática da tipologia socialmente e o direcionamento à plenitude, sem dúvida, constituem pólos de similaridade entre Platão e Jung.

 

Segundo o sistema junguiano, os tipos não estão em relação de subordinação, ou seja, cada um tem a sua própria natureza, não havendo um tipo superior ao outro, conforme com o que já foi exposto a esse respeito.

No entanto, a teoria platônica mostra claramente essa hierarquia, já a partir da colocação da problemática da alma, através de sua forma tríplice. Assim, as funções sentimento e sensação (pístico e icônico, respectivamente) estariam em relação dependência da alma racional (filósofo: caráter dianoético), salientando que a função sensação seria a mais baixa de todas, estando, inclusive, subordinada à que lhe é imediatamente superior (sentimento) também.

Essa hierarquia nas funções é levada também ao campo social, pois acentua a diferença de classes, posto que, quanto mais baixo o tipo de caráter, mais baixa é a classe social a que o indivíduo deve pertencer.

Embora o governante/filósofo deva ser de caráter dianoético, há ainda uma função psíquica mais elevada que é a noesis, conforme já citado, que privilegia o idealista, por estar em contemplação direta com o mundo das idéias perfeitas. Por conseguinte, a função que está no ápice para Platão é a intuição (segundo a terminologia junguiana), sendo então, a mais importante entre todas.

Vocação

Observando-se os paralelos entre as duas teorias e levando em consideração o hiato temporal entre ambos os pensadores, além das evidentes diferenças culturais, evidencia-se uma grande similaridade de pensamento, que visam sobretudo o crescimento do indivíduo e a sua melhor atuação em sociedade. Tanto em Platão como em Jung verificamos marcas vocacionais em seus sistemas. Em vista disso, convidamos o leitor a lançar um olhar para o seu próprio interior, verificando os elementos de seu potencial para a vida. Um trabalho de introspecção faz-se necessário e, diríamos, até com relativa freqüência, a fim de que se possa ter clareza sobre a sua genuína vocação para a sua atuação no mundo, liberando elementos positivos tanto para si próprio, como para a sociedade.

Se esse olhar interior apresentar-se como insuficiente, há bons profissionais especializados em Psicologia Analítica, que poderão orientar convenientemente, a fim de que tal objetivo seja alcançado.

Educação

Embora Platão apresente a sua teoria totalmente hierarquizada no que diz respeito às funções, ainda assim há a possibilidade de crescimento dentro dessas mesmas funções através do processo educativo. Sobre esse aspecto, a psicologia junguiana elimina totalmente a dependência mútua entre as funções e orienta para a maturação das mesmas rumo à individuação, com a conseqüente integração entre todas, inclusive no que tange às atitudes (introversão e extroversão), que podem ser conciliadas e unificadas.

Portanto, cabe um olhar atento por parte de pais, professores, educadores e analistas para com aqueles que estão sob os seus cuidados. Vocação e potencial devem ser observados e respeitados, possibilitando o crescimento necessário e a preparação para a felicidade e para o mundo.

Cabe um exemplo: se em sala de aula, um estudante possui como função principal a intuição, o educador, além de valorizá-la, deverá incentivar o desenvolvimento de sua função oposta – a sensação – orientando-o a observar melhor o seu exterior, para que a coleta de dados oriundos do meio externo lhe seja acessível.

Cidadania

Por fim, chegamos à cidadania, como fruto da vocação pessoal e da educação, sendo esta última a maior responsável pela construção do cidadão. Observadas as diferenças pessoais, lembramos que a somatória das mesmas, ou seja, a diversidade, leva à unidade da sociedade. Unidade essa que é aprimorada incessantemente pela educação adequada, pois através do crescimento (ou individuação) de cada um, chega-se a um plano de convivência, colaboração e desenvolvimento social.

Nesse sentido, poderemos concordar com os pensadores ora apresentados, visto que ambos tiveram preocupações éticas muito grandes, visando a construção de um mundo melhor.

Esse mundo melhor poderá ser traduzido em uma única palavra: felicidade!

Carlos Copelli Neto

Filósofo e Especialista em Filosofia Clínica

 

Bibliografia sugerida:

CALVIN, S. H.; NORDBY, V. J. Introdução à Psicologia Junguiana. Trad. de Heloysa de Lima Dantas. São Paulo: Cultrix, 1993.

JAEGER, W. Paidéia – A formação do homem grego. Trad. de Artur M. Parreira. São Paulo: Martins Fontes, 1989.

JUNG, C. G. Tipos Psicológicos. Trad. De Álvaro Cabral. Rio de Janeiro: Zahar, 1967.

PLATÃO. A República. Trad. De Eduardo Menezes. São Paulo: Livraria Exposição do Livro, s/d.

________.  Timeu. Trad. De Enrico Corvisieri. São Paulo: Nova Cultural, 2004.

SILVEIRA, N. da. Jung – Vida e Obra. São Paulo: Paz e Terra, 1996.

ZACHARIAS, J. J. de M. Tipos – a diversidade humana. São Paulo: Vetor, 2006.

 

 




* Segundo Platão, haveria um mundo extrafísico, onde estariam as idéias das coisas existentes no mundo. Assim, a alma ao nascer, traria consigo, ainda que forma embrionária tais idéias. Por exemplo, a alma teria contemplado a idéia de uma “árvore perfeita” e quando em sua vida na Terra, ao contemplar as mais variadas formas de árvores, as identificaria como “árvores”, considerando a sua contemplação anterior.