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Homem, Ética e Justiça: reflexões a partir de Enrique Dussel

Muito se debate sobre os fundamentos da Ética e da Justiça. Dentre os muitos pensadores, destacamos, nesse texto, o pensamento dusseliano, que contribui valiosamente para o entendimento dessa questão. Enrique Dussel ressalta a fundamentalidade do ser do homem para que se possa, então, compreendê-lo como fundamento da Ética e da Justiça.

O primeiro passo é ter em mente o homem como pro-jeto supra-stância, aberto para o diálogo com o outro, com respeito e disposição para servir-lhe em suas necessidades, pois sendo um projeto, fica evidente que o homem tem um fim a alcançar e esse fim somente poderá ser alcançado, em sua máxima expressão, mediante o atendimento das necessidades do Outro, porquanto o homem depende naturalmente de Outrem para viver. Daí, temos que o fim do homem é o próprio fim da humanidade (ELL I 63).

O segundo passo fica estabelecido ao compreender-se que o homem é o único ente capaz de ter acesso ao Ser. Isso porque é o único ente possuidor de razão e consciência dessa racionalidade, o que lhe permite escolher entre as várias possibilidades existentes no mundo. E é nessa situação que Dussel aponta, em consonância com Heidegger, dois instantes capitais:

Primeiro, o fato de o homem ter sua existência aberta fundamentalmente ao mundo em que está inserido. Segundo, a utilização do que lhe é apresentado no mundo como meio de possibilitar-lhe alcançar praticamente seus fins existenciais. (ELL I 47).

No primeiro momento, o homem percebe o mundo, que lhe é anterior, e se abre, então, num segundo momento, para a perspectiva de acessar e compreender o seu próprio ser. Dessa forma, o homem, que não pode deixar de ser o que é, pode, todavia, promover alterações que o levem a ser mais do que é mediante a práxis, num leque de possibilidades que se lhe apresentam. Sedimenta-se, com esse pensamento, a responsabilidade do homem pelo caminho a ser escolhido e, por conseguinte, a fundamentação da Ética no ser do homem.

“Na compreensão que interessa à ética como seu fundamental acesso trata-se do ser do homem, o ser em cada caso meu. Ou seja, se o fundamento significa que é a priori, que quando fui lançado no ex-sistir já me fora dado. É que o começar a ex-sistir não é mais do que o começar a “encarregar-me” do meu ser recebido sob a minha responsabilidade (“responsabilida-de” não vem de responder a, mas responder por-diante de).” (ELL I 47).

Portanto, a compreensão do ser do homem é de fundamental importância para a Ética. O homem está acima das demais substâncias ou entes porque é o único que possui a capacidade de perceber o mundo e se perceber. É uma supra-stância. Assim, embora sua essência seja anterior à sua existência, seu ser somente se manifesta na sua existência.

O homem é responsável pelo caminho adotado em seu comportamento, vez que lhe é inerente o poder-ser. E justamente em razão desse poder-ser, é que o homem jamais poderá ser tido como totalidade, dado que a sua incompletude advém desde o início de sua existência. Assim, entre o que o homem é e o que pode-ser há todo o mundo em que está inserido. Esse poder-ser, conforme as opções adotadas, poderá se tornar um não-poder-ser. O homem é, por conseguinte, um ser aberto ao mundo e a si mesmo, na constante tentativa de superação dos limites que se lhe apresentam.

É importante destacar que o poder-ser não é apenas a dýnamis natural a que todas as coisas estão sujeitas. No caso do homem, ele é o sujeito, é ele quem opera a dýnamis, em busca da totalidade.

Como se pode observar do exposto, o poder-ser é referente sempre ao futuro. É, por isso, umpro-jeto adstrito à temporalidade. É uma presença-ausente que se mostra a cada momento em que vai sendo, num processo dialético existencial, isto é, num processo de interação do homem com o mundo, com o outro e consigo mesmo. Esse poder-ser é o próprio dever-ser. Para que o homem faça ser o poder-ser, deve realizar algo que, necessariamente, implicará nessa interação. E, portanto, para alcançar o fim desejado, o homem deverá agir diante das possibilidades que se lhe apresentam no mundo.

Está, assim, lançado o fundamento da Ética que propiciará uma nova visão de mundo e a concretização da justiça em cada caso de cada homem, independente de suas condições pessoais.

O homem está lançado no mundo diante de uma infinidade de possibilidades e no intento de realizar-se enquanto ser. Diante dessa condição, percebe-se de imediato a distinção entre o que ele é e o que pode ser, num movimento dialético-existencial. Esse processo é o que Enrique Dussel denomina práxis, o modo de ser do homem no mundo. Essas possibilidades, vale ressaltar, nunca se apresentam como necessárias, mas quando muito como obrigantes, ficando ressalvada ao homem sempre a liberdade de escolha.

A liberdade está fundada na indeterminação das possibilidades ou, mais precisamente, no próprio ser, ao contrário do que pensava Kant, para o qual a liberdade é o fundamento do sistema racional humano, ou mesmo do que defendia Sartre, para quem “A liberdade é o fundamento de todas as essências, porque é transcendendo o mundo para suas possibilidades próprias que o homem descobre as essências intramundanas” (Sartre. O Ser e o Nada).

O fato de o homem ser incompleto e incapaz de realizar todas as suas possibilidades o coloca à frente de um leque de opções que o obrigam a proceder à escolha, evidenciando, assim, que a liberdade se constitui a partir daquela impossibilidade humana. Por isso não é fundante, mas fundada no ser do homem. Já o grau de liberdade do homem, é importante ressaltar, está ligado não à maior ou menor quantidade de possibilidades, mas, onticamente, à sua maior ou menor capacidade de compreensão de seu próprio ser. Por estar vinculada à compreensão do ser e sua realização, a liberdade é a grande expressão da finitude do homem. E não é absoluta, porque o homem não pode alterar o seu estar originário no mundo, mas apenas se conduzir na busca de uma totalização que também não será alcançada. A liberdade é, portanto, a própria possibilidade de se compreender o ente humano, “a liberdade primeiramente mais do que nota positiva é negatividade: negação da imediatez. O que a com-preensão é para o poder-ser, a liberdade é para as possibilidades: condição de possibilidade da desvelação do ente.” (ELL I 78).

Abre-se, então, a problemática dos valores, em razão da necessidade de opção por umas possibilidades em detrimento de outras.

Para isso, é necessário que se saiba diferenciá-las, evidentemente, tornando a possibilidade que promove o poder-ser muito valiosa. Mas, para que seja valiosa, é necessário que a possibilidade esteja no processo de realização do poder-ser, e não fora dele, até porque, fora, não é possibilidade. O valor está, por conseguinte, no fundado e não no fundante, isto é, o homem não é quem constitui o valor, mas o descobre no mundo enquanto possibilidade realizadora. Essa é a razão pela qual o valor não pode ser o fundamento da moral, como defendem muitos autores; toda possibilidade tem seu valor, conforme o momento e as circunstâncias. Assim, o valor não é puramente axiológico, mas intrinsecamente ligado à compreensão e interpretação do homem em sua existência mundana. O valor é, portanto, a posteriori e não a priori.

[...] nesse caso a ética não é doutrina da arte nem a práxis existencial uma invenção, mas muito pelo contrário, a ética seria um pensar descobridor acerca de um cotidiano desocultar existencialmente possibilidades. O valor de um evidente absoluto em si é agora situado como a possibilidade qual possibilidade fundada no ser. (ELL I 73).

O homem atribui maior valor às opções que melhor possibilitem, segundo seu pensar, a sua realização e a de seus grupos sociais, tais como familiar, profissional, educacional, erótico, político etc. Nesse sentido, torna-se imperioso pensar nas categorias fundamentais do ente humano. A Erótica, que o constitui e se cristaliza sobretudo no núcleo familiar; a Pedagógica, que contribui fundamentalmente para a sua formação e amadurecimento, expressa principalmente nos núcleos família e escola; e a Política, que concerne à sua relação de poder em face do Outro, concretizada desde no bairro em que vive até no mundo como um todo.

A relação homem-mulher é a que parte de uma dis-tinção máxima, isto é, um é estranho ao outro, sem nenhum vínculo originário, e, após, o encontro, na vigência da experiência erótica, guarda o mínimo de alteridade.

A relação irmão-irmão, ao contrário, parte de uma dis-tinção mínima, posto que surgem os dois no seio de uma mesma família, ligados a uma mesma totalidade pré-constituída, embora, ressalte-se, desde o início sejam dis-tintos e não apenas di-ferentes, porquanto não estão encerrados numa mesma totalidade, apenas conectados a ela. Após o encontro, contudo, o grau de alteridade se fixa no máximo durante toda a vida, pois a relação entre eles será, sobretudo,política.

Quanto à relação pais-filhos, verifica-se que é intermediária, vez que, desde o início, tem um nível de dis-tinção médio e guarda essa intermediaridade mesmo durante a relação, que, predominantemente, diz respeito à pedagógica.

Enfim, podemos concluir, diante do exposto, que é de suma importância repensar as relações fundamentais, considerado o homem como fundamento, para começar-se a estabelecer um mundo pautado na ética e na justiça.

Luiz Meirelles

Mestre em Filosofia –PUC/SP

Bel. Em Direito – Unisantos

Lic. Em Letras e Filosofia –

Unisantos

 

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