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Sócrates e Cristo: um breve paralelo

Por volta do século II d.C., o cristianismo fortalecia-se em Roma, havia uma ligação entre a filosofia pagã e o pensamento cristão ligando Sócrates a essa nova concepção religiosa emergente.

 

Segundo alguns pensadores, Sócrates teria antecipado o cristianismo. Para Clemente de Alexandria, século II d. C., a civilização grega e a judaica teriam em comum o advento do mestre. O cristianismo não aboliu, antes aperfeiçoou o pensamento helênico. A filosofia teria sido um dom de Deus aos gregos, uma primeira etapa na formação espiritual. A filosofia grega segundo esse pensador, teria aberto o caminho para o cristianismo pela concepção da alma individual, a educação pelo pedagogo e por fim a educação do mestre. Tudo isso teria sido um preparo para a recepção dos bens espirituais e da salvação individual.

O discípulo ou iniciado, figura na tradição grega como parte das confrarias místicas ou filosóficas. Seguem sempre o ensinamento de seu mestre, buscando assemelhar-se-lhe em tudo.

Sócrates tinha em seus discípulos amigos fieis que o honraram e acompanharam até seus últimos dias. Amigos como Platão, que souberam cultivar e preservar mantendo vivo seu pensamento.

De outro modo o cristianismo é a única religião que exibe o ser supremo como amor.

Jesus Cristo é a figura central na historia do cristianismo. Cristo representa um ponto de ligação entre Deus e o homem, ele é o mensageiro do divino; amigo dos homens, voltado à criatura, deu-se em sacrifício para a salvação da alma dos homens. Cristo aproximou-se do horizonte humano deixando aos homens o sinal de sua presença e a promessa de seu retorno futuro.

O amor de Cristo é seu desejo pelo objeto de sua afeição, e sua devoção a essa causa. Cristo ama os homens individualmente. Ele é uma pessoa e ama a cada um de nós como pessoa, com afeição pessoal.

Os objetos do amor de Jesus definem-se como divino e humano. Deus pai é o objeto primário de seu amor, mas ele tem também autentico amor para com os homens. Jesus nunca perdeu de vista o propósito de sua grande missão; estava sempre alerta, pronto para alcançar os homens. O verdadeiro mediador entre Deus criador e as suas criaturas.

O amor é atributo essencial da vida divina, quer se encontre em Deus, Cristo ou nos homens. A expressão suprema do amor não está nos presentes dados ou serviços prestados, mas ao sacrifício e, especialmente, no sacrifício da própria vida: como em Cristo ou Sócrates.

No pensamento cristão, o sentido maior do amor, é o amor caridade, (ágape) amor fraterno que enfatiza o sentido da doação, da autodoação. A excelência no amor é o amor que dá de si sem nada pretender em troca; amor que vem de Deus e que propicia a salvação da alma e a posse da vida eterna.

Paulo de Tarso, o grande pensador cristão, considera a caridade a virtude fundamental, pois é ela que consiste na máxima cristã por excelência: ama a teu próximo como a ti mesmo.

Segundo Paulo, a caridade é maior que a esperança e a fé, pois é ela que substancia e que mantém unidos os membros da comunidade cristã e que faz com que esta se converta no próprio corpo de Cristo. Dirá:

“Ainda que eu falasse as línguas dos homens e dos anjos, e não tivesse caridade, seria como o metal que soa ou como o sino que tine...” ( I Corintios, 13.13 ).

Todas as outras graças cristãs encontram na caridade a sua origem e é somente por ela que podemos assegurar a aprovação divina. Ela é a operação fundamental desse novo espirito, principio aproximativo por excelência. Diferentemente do Eros grego que se realizava em vertiginosa ascensão rumo ao perfeito, a caridade consiste por sua vez, em salvar o imperfeito e em expandir-se no horizonte do mundo, significando avitoria sobre este.

O amor cristão é aquela espécie de amor que infunde virtude e graça, dadivas que se constituem como salvação, um despertar para o existir autêntico: “E nós conhecemos e cremos o amor que Deus nos tem. Deus é amor, e aquele que permanece no amor permanece em Deus e Deus nele “ ( I João, 4.16 ).

Cristo mortal como os homens e verdadeiro como Deus. Cristo é a recompensa do justo, vida, paz e amor em Deus. Com ele a verdade toma uma dimensão humana, substanciando o sujeito, onde a única forma de sabedoria é o conhecimento de Deus.

O homem atraiu a si a totalidade do sagrado ao atrair através do amor de Deus o amor de Cristo, com isto assume uma dimensão universal, o movimento superior da ação divina.

Cristo representa a culminância do processo de humanização do divino que aproxima o homem de Deus e permite sua reconciliação. Em Cristo, o divino assemelha-se ao humano numa unidade intuitiva, o divino concentrado na essência do homem que se torna o herdeiro do reino dos céus.

O homem é o novo templo de Deus sobre a terra engendrado em Cristo, numa conexão interior, dimensão espiritual, liberdade intima, extensão da potência de Deus.

Neste contexto de amor, entretanto, a salvação da alma não se restringe tão somente a esfera da vontade do homem; não basta que ele assim o queira, é necessário o seu amor e sua fé: amor em Deus e fé em Cristo como seu mediador necessário e salvador. A vida eterna para a alma do homem depende em primeira instancia da benevolência e do amor de Deus, facultado desde sempre ao homem pela via de acesso que é Cristo.

Cristo semelhantemente a Sócrates deixou seus discípulos, porem diferem-se as doutrinas.

O discípulo de Cristo contrapõe-se ao discípulo de Sócrates na medida em que Cristo representa a verdade, ou melhor, é concebido como a própria verdade. Enquanto que o discípulo de Sócrates tem em si a verdade, não obstante a tenham esquecido por conta da influencia dos sentidos no plano mortal, o que, no entanto, não afasta de sua alma a permanência do ser que a qualquer momento pode manifestar-se.

Por seu turno, os seguidores de Cristo acham-se separados de seu ser divino, estando em perdição e pecado, e apenas pela intercessão do mestre podem alcançar a verdadeira vida e a liberdade. Cristo, no entanto, por encerrar em si o princípio da divindade difere de Sócrates por ser único e insubstituível e apenas pela participação de sua divindade é possível ascender-se a vida eterna.

O discípulo de Sócrates está ligado à idéia de sua própria perfeição; essa autoconsciência, a posse de si mesmo como a representação de um bem já existente, a emancipação do espírito transcendente que reconhece o traço de sua verdadeira natureza ontológica.

O mestre deve agir sobre a alma do discípulo como estimulo e força no sentido de seu poder ser. A palavra determina a liberdade, a condição de receber o ensinamento e a edificação de uma nova forma de viver, uma troca do receber e do dar, mensagem espiritual total e plena.

O mestre (no sentido socrático-platônico), atuava não no sentido de se impor, mas no de proporcionar que o discípulo se encontrasse. Um atuar do espírito na forma de comunicação existencial.

O pensamento do ocidente operou uma fusão entre a mensagem socrática e a mensagem cristã, na forma de um humanismo que se recusa a considerar o homem como apenas uma criatura entre as demais. Um modo de proceder que outorga aos costumes o retorno do espírito reconduzido à correção das paixões que o desvirtuaram e pelo qual ele pode elevar-se às verdades eternas, a contemplação do ser imutável.

O sentido da cristandade em Sócrates implicaria numa mescla de sua mensagem ao ensinamento cristão como consciência que evidencia a descoberta do mestre interior, uma alma pura e atenta. A alma que procura conhecer-se a si mesma, que é um conhecer a deus, ligação espiritual e ética com o divino, razão e inspiração.

Diferentemente do cristão, o amor socrático vê no homem a salvação de sua alma pela pratica da virtude, uma ascese espiritual pela contemplação a partir das coisas do mundo numa escalada ascendente rumo a perfeição do espírito. O mundo humano, a vida, principia-se como possibilidade de redenção espiritual. É a partir das coisas concretas da vida que o homem encontra seu caminho para a eternidade.

O maior traço de religiosidade de Sócrates encontra-se expresso em seu pensamento, o caráter de ordem divina que ele atribuía a sua missão definem fundamentalmente a natureza de seu modo de vida, uma inspiração religiosa quase sacerdotal. Ele tinha no valor da razão e da virtude a expressão de uma consciência total da missão a que se dedicou e a qual sacrificou seus últimos dias. “Pois isto é o que o deus me ordenou e creio que a nossa cidade não conta com maior bem do que este serviço que faço ao deus (...) e acrescenta: ”atenienses, quer me absolvais ou não, eu não agirei de outra maneira ainda que me exponha a morrer mil vezes“. ( Platão, Apologia, 30.b.c )

Para Sócrates, conhecer-se a si mesmo, implica em conhecer que a alma que habita em seu interior necessita purificar-se das imperfeições que lhe impõe o corpo. Autoconsciência das próprias limitações no reconhecimento das faltas que se ofuscam por detrás da ilusão naquele que pretensamente se julga de posse de verdades absolutas.

Reconhecer suas limitações, assumir a própria ignorância, é conscientizar-se da realidade do que é contrario a natureza divina da alma e a tarefa de se impor incansavelmente a pratica da correção de todas as suas faltas.

Sócrates possuía um espírito sóbrio extremamente conservador, religioso. Seu conceito sereno e calmo de vida arraigava-se profundamente em suas convicções, entre as quais, a eternidade da alma surgia como um caminho de purificação, um meio de transito para uma vida imortal e eterna.

A natureza imortal da alma é a divindade dentro do homem, resquício da inteligência universal, a existência dessa alma e inteligência no homem prova a alma e a inteligência divina, manifestação do invisível em nós. Um deus que se manifesta ao homem sob a representação do equilíbrio e ordem do mundo como finalidade e determinação de todas as coisas e da vida manifesta na natureza.

Sócrates fundamenta assim, o cumprimento de sua missão sagrada, destino determinado pelo deus, seu “magistério” e condição de vida. Principio de justiça, liberdade e verdade espiritual e uma crença futura na imortalidade da alma, frutos de uma religiosidade que transcende os limites inteligíveis, que valoriza e iluminaseu agir e seu pensar, que encontra acolhida em sua libertação e elevação espiritual: seu deus ou seu “demônio” interior.

 

Dalva de Fátima Fulgeri

Professora de Filosofia – Licenciada pela Unisantos.