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Paradigmas das"Doutrinas não escritas" de Platão

O paradigma, inspirado em    Schleiermacher, que constituía o mo­delo de interpretação do pensamento de Platão fundamentava-se, sobretudo, na tese de que os escritos platônicos são autárquicos, ou seja, uma expressão cabal da forma e do conteúdo do seu pensamento, inclusive dos ensinamentos ministrados na Academia, relegando como secundária e inexpressiva toda a tradição indireta. Os poucos autores adeptos do paradigma dominante que levavam em consideração as “Doutrinas não escritas” de Platão, as consideravam como fruto de sua senectude, substancialmente inexpressiva, pois não perpassavam toda sua obra.

        O novo paradigma hermenêutico de interpretação do pensamento platônico, proposto pela escola de Tübingen-Milão, baseado na tese de que os escritos não são capazes de expressar cabalmente as “coisas de maior valor”, sustentada pelo próprio Platão no Fedro e na Carta VII, representa uma ruptura com o paradigma inaugurado por Schleiermacher, na medida que nega a autonomia e autarquia dos escritos e considera as “Doutrinas não escritas” um “socorro” necessário à compreensão do pensamento platônico em sua totalidade.

        Seguindo a reflexão de Giovanni Reale, apresentaremos respectivamente, nos “autotestemunhos” do Fedro e da Carta VII, as deficiências que Platão atribui ao escrito que o impedem de comunicar as verdades supremas de modo adequado.

  1. O escrito não aumenta a sabedoria e nem a memória dos homens. O escrito é inútil, pois a maioria dos leitores compreende esses ensinamentos apenas no nível da opinião, permanecendo na aparência da compreensão da verdade. Os discursos consignados ao escrito possuem apenas uma função hipomnemática, ou seja, propiciam a rememoração do conhecimento que já foi adquirido pela oralidade.
  2. O escrito não consegue defender-se sem o auxílio do seu autor. O escrito assemelha-se às criaturas impressas na pintura, ambos parecem vivos, dinâmicos, mas na realidade são estáticos e sem vida, não respondem a nenhuma objeção ou crítica. Porém, ao escrito soma-se um agravante, além de limitar-se apenas a repetir as mesmas coisas que estão escritas, ele não é capaz de discernir ou escolher as pessoas que estão aptas para enfrentá-lo e compreendê-lo das que não estão, dirigindo-se a todos.
  3. O escrito é mimesis, imitatio do discurso realizado na dimensão oral. O escrito é inferior ao discurso realizado na oralidade porque não passa de uma cópia do modelo originário. Enquanto o escrito é fixado no papel, o discurso oral é fixado na própria alma de quem apreende, sendo assim, dinâmico e capaz de defender-se sozinho.
  4. O escrito envolve grande parte de “jogo”, enquanto a oralidade implica “seriedade”. Fixar a verdade no escrito é plantá-la em um ambiente artificial, com demasiado calor e adubo crescerá rápido, causando a aparência do seu entendimento, porém, por mais belo que seja, morre antes de produzir frutos. Quem possui a ciência e age com “seriedade”, utilizando a arte dialética, confiando as “coisas de maior valor” somente à oralidade, seguindo o tempo e o modo que seu cultivo exige, as fixa na alma apta a acolhê-la, alcançando significativos frutos, se as confia ao escrito, não o faz por “seriedade”, pois sabe que o mesmo é apenas um “jogo” que procede “mitologizando” e que não consegue comunicar a verdade de modo adequado.
  5. A clareza e a completude pertencem somente à oralidade. Para conduzir o escrito de modo perfeito é preciso que o seu autor conheça a verdade e a alma daqueles a quem o escrito se dirige, para estabelecer uma correspondência entre os mesmos. Destarte, nenhum discurso foi escrito com muita “seriedade”, pois uma vez que o escrito não consegue restringir-se somente às almas aptas a acolhê-lo, uma correspondência adequada entre a verdade e a alma não é possível ser realizada. Conseqüentemente, somente nos discursos reservados à oralidade se encontra “clareza”, “completude” e “seriedade”.
  6. O filósofo confia as “coisas de maior valor” somente à oralidade e não ao escrito. Todo aquele que compôs qualquer escrito com conhecimento da verdade sem ter consignado as "coisas de maior valor" e que é capaz de vir ao seu “socorro” através da oralidade, pode ser chamado de filósofo, pois a sua essência se manifesta e atua na oralidade e não no escrito.

Os “autotestemunhos” de Platão, impressos no Fedro, deixam claro que o escrito possui limitações que o afastam do modelo originário, não sendo capaz de expressar a verdade de modo adequado, necessita do “socorro” dialético da oralidade. Portanto, o paradigma tradicional fica comprometido, uma vez que a autonomia dos escritos platônicos é negada pelo próprio autor.

Na Carta VII, Platão retoma a sua posição sobre o escrito defendida no Fedro e explica alguns de seus pontos com maior clareza.

  1. A prova que Platão submetia aos que se aproximavam da filosofia. Platão submetia as pessoas que desejavam trilhar o caminho da filosofia a uma prova, ela consistia basicamente em apresentar sucintamente a filosofia no seu conjunto, ressaltando as grandes dificuldades e fadigas que a sua busca implica. Quem possuía a natureza apta à filosofia, julgava que a via apresentada por Platão, apesar das grandes fadigas, era a mais correta e se colocava imediatamente a percorrê-la com a ajuda de um mestre. As pessoas que não possuíam a sua natureza apta à filosofia, reagiam negativamente ao grande número de coisas a aprender e às fadigas inerentes à sua busca, e se convenciam que já haviam escutado o suficiente, não se empenhando mais em buscar a verdade.
  2. As “coisas de maior valor” devem ser consignadas unicamente à oralidade. O tirano Dionísio de Siracusa, após ter ouvido uma única preleção oral de Platão, não só julgou ter aprendido todas as coisas, mas também as de “maior valor” e se sentiu no direito de consigná-las ao escrito. Platão deixa claro que pelo simples fato de ter consignado ao escrito o que só pode ser reservado à oralidade, Dionísio demonstra que não compreendeu nada ao seu respeito.
  3. As razões gnosiológicas pelas quais as “coisas de maior valor” não são consignadas ao escrito. Somente os homens que possuem natureza apta podem alcançar os fundamentos últimos do real pelo escrito, contudo é uma via inútil, uma vez que tal objetivo é alcançado com facilidade e pouca ajuda na dimensão oral. Aos homens que não possuem sua natureza apta, e que se perdem com facilidade em tal busca, não tem nenhuma utilidade o escrito sobre tais coisas.
  4.  Quem escreve sobre as “coisas de maior valor” não faz por motivos corretos. As “coisas de maior valor” se reduzem a pequenas proposições e quem às possui não carece de recursos para lembrar o que está impresso em sua própria alma, portanto, quem escreve sobre tais coisas não o faz por motivos justificáveis, apenas por glória pessoal, e o que é pior, sem preparação adequada.

 Na Carta VII, Platão além de ressaltar que o escrito não expressa de modo adequado as “coisas de maior valor”, deixa claro que não existe e nunca existirá um escrito seu sobre tais coisas, colocando em gravíssima crise o paradigma hermenêuticos tradicional.

Os fundamentos últimos do pensamento de Platão não se encontram em nenhum dos seus escritos, pois foram reservados exclusivamente à oralidade, porém nos foram transmitidos pela tradição indireta (testemunho de seus discípulos), que revelam os Princípios primeiros e supremos do real e indicam os nexos fundamentais que ligam a realidade a tais princípios. O “socorro” oral que o escrito necessita constitui a estrutura de sustentação de todos os diálogos de Platão, inclusive os de sua juventude. De simples apêndice, as “Doutrinas não escritas”, transmitidas pela tradição indireta, se tornaram a estrutura e o eixo de interpretação de todos os escritos platônicos. Apesar de toda a crítica, em nenhum momento Platão afirma que a consignação das “coisas de maior valor” ao escrito era impossível, apenas inútil, devido ao fato de tais coisas supremas serem postas à disposição de todos.  Portanto, os discípulos de Platão não escreveram o que o seu mestre considerava incomunicável, mas sim, o que considerava inútil devido sua convicção da supremacia dialética da oralidade sobre o escrito.

Os “autotestemunhos” de Platão e os testemunhos dos seus discípulos sobre as “Doutrinas não escritas” constituem o fundamento principal do novo paradigma hermenêutico da escola de Tübingen-Milão. Para compreender o pensamento platônico em sua totalidade, os testemunhos dos discípulos de Platão devem ser considerados um documento válido e fundamental daquilo que se faz ausente nos diálogos platônicos, principalmente na medida em que o próprio Platão considerava os seus discípulos juizes mais autorizados e aptos para consignar as verdades últimas ao escrito do que o tirano Dionísio.

Luciano Rosset

Mestrando em Filosofia – PUC/SP

 

BIBLIOGRAFIA

HAVELOCK, E. A. A revolução da escrita na Grécia e suas conseqüências culturais. Trad. O.J. Serra. São Paulo: Editora UNESP, Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1996.

PLATÃO. Fedro. In: PLATÃO. Diálogos: Mênon - Banquete - Fedro. 5. ed. Trad. Jorge Paleikat. São Paulo: Editora Globo, s. d., 191 -263 p.

REALE, Giovanni. Para uma nova interpretação de Platão - Releitura da metafísica dos grandes diálogos à luz das “Doutrinas não-escritas”. 14. ed. Trad. Marcelo Perine. São Paulo: Edições Loyola, 1997.

SZLEZÁK, T. A. Platone e la scrittura della filosofia. Analisi di struttura dei dialoghi della giovinezza e della maturità alla luce di um nuovo paradigma ermeneutico.  Trad. Giovanni Reale. Milão: Vita e Pensiero, 1989.

 

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